Onde a água vale ouro, até os vizinhos já vigiam o que se gasta
Gaelen Pinock e Eduarda Ferrão vivem em cidades onde a água está a transformar-se em ouro. A Cidade do Cabo e Maputo têm fortes restrições no acesso a este bem. Saiba como é viver sem água pela boca de quem não tem outra opção. Um "abre-olhos" que vem de África para o mundo. Aguentaria não tomar o seu banho? Não regar as suas plantas ou lavar a sua roupa? Se não poupar poderá não ter outra opção.
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Mundo Recursos
Já se imaginou a viver com pouca ou quase nenhuma água numa cidade moderna? Certamente, não. Pois bem, milhares de pessoas sofrem diariamente com este problema que tem vindo a agravar-se e que só foi retardado devido ao esforço dos cidadãos e às medidas e restrições implementadas pelo governo. Este “abre-olhos” vem da África do Sul e de Moçambique para o mundo. Fica o aviso.
Como se vive assim? Quais são as maiores dificuldades encontradas no dia a dia? Como é feita a gestão da água atribuída a cada cidadão? Estas foram as questões que o Notícias ao Minuto foi tentar ver respondidas por quem vive esta realidade.
Comecemos pela Cidade do Cabo, onde a situação é mais grave. Gaelen Pinock, nascido e criado na capital sul-africana ajudou-nos a vestir a pele de quem vive com acesso restrito a um bem tão essencial e dado como garantido, como é a água. “O ‘Dia-D’ [também conhecido por Dia Zero, o dia em que a água canalizada será cortada na cidade] foi adiado para junho. Esperemos que chova muito em junho e julho”, desabafou, revelando que “choveu bastante na semana passada”.
”Toda a gente está limitada a 50 litros de água por dia, como manda a Restrição nível 6B. O uso de água para a agricultura está proibido, por exemplo.”, começou por dizer. Gaellen respondeu também à nossa pergunta sobre a possibilidade de evitar o dia que não quer ver chegar. “Sim, acho que sim. Aparentemente esta foi a maior redução do uso de água por cidadãos alguma vez registada: 100 milhões de litros de poupança diária. Estão também a ser plantadas plantas de dessalinização para casos de emergência”, adiantou, atribuindo a culpa do que está a acontecer ao “aquecimento global”, mas não só. “A cidade cresceu rapidamente em população e turismo, então, a procura pela água é elevada. Nós não reciclamos as águas residuais ou da chuva. Todo o sul e Oeste da África do Sul estão a desertificar-se. Já somos classificados como semi-deserto. É uma tendência que vem a acontecer há décadas", explicou.
Como é possível viver com o medo de que nos falte a ‘única’ coisa que não nos pode faltar? Que implicações tem este problema no dia a dia? Impunha-se perceber. “Em minha casa reduzimos o uso de água abaixo dos 50 litros diários permitidos. Para isso, só podemos fazer uma máquina de lavar roupa uma vez por semana (cada máquina são 50 litros). Não lavamos loiça à mão, enchemos a máquina ao máximo que usa 12 litros por lavagem. Nós aproveitamos os desperdícios de água (como por exemplo, os desperdícios do banho). Cortámos o fornecimento de água para a casa de banho e em vez de usarmos o autoclismo, usamos essa água. Se não fizer desporto, tomo banho dia sim dia não. Recolhi 300 litros de água da chuva que usamos também para o mesmo propósito, mas só quando os ‘desperdícios’ acabam. Não lavamos o carro nem regamos as plantas. Não tomo um banho (de imersão) há anos”, foi assim que Gaelen descreveu o seu quotidiano nos últimos anos.
"Os meus país têm 3.500 litros que aproveitaram do telhado", partilhou o sul-africano© Notícias ao Minuto
E se a água canalizada for realmente cortada? “Os moradores vão ter de recolher 25 litros por pessoa de locais designados para o efeito por toda a cidade. Este é um problema de logística gigante, não acredito que vá funcionar bem. Imagine-se carros, estacionamento e pessoas a carregar 25 litros de água. Entre elas, idosos e crianças”, respondeu.
Para o sul-africano, a solução passa pela “melhor gestão da cidade e das províncias. Barragens, dessalinização, purificação da água, aproveitamento de água da chuva. Mais cuidado e redução do consumo de água pelas pessoas”, declarou, afirmando que, na sua opinião, “a população fez um trabalho fantástico numa drástica redução do uso de água. As pessoas falam muito sobre este tema e controlam se os vizinhos e amigos fazem a sua parte”.
"As pessoas falam muito sobre este tema e controlam se os vizinhos e amigos fazem a sua parte”, revelou Gaelen© Notícias ao Minuto
Como em qualquer problema estrutural num país, a política tem o seu lugar. “Há muita especulação à cerca de uma possível má gestão do governo. A cidade e a província são governadas pelo partido Aliança Democrática. O país é governado por outro partido, o Congresso Nacional Africano. A AD acusou o CNA de má gestão e negligência, alguns dizem intencional. A CNA acusa a AD de coisas parecidas. Recentemente, um político do CNA acusou um a AD de engendrar esta crise para forçar a proposta de dessalinização”, contextualizou Pinnock.
“Eu acho que isto é um grande abre-olhos. Os recursos não são inesgotáveis. O ano passado estivemos perto de ficar sem água. Este ano será mesmo no limite. Mais, são precisos anos de muita chuva para encher completamente as barragens, por isso ficaremos presos a este problema por um tempo”, rematou.
Em Moçambique o problema não é diferente, ainda que as proporções não tenham chegado a extremos
“Na verdade, não é a primeira vez que surge a situação de falta de água em Maputo. Já há alguns anos que a barragem dos Pequenos Libombos, que fornece água a Maputo, Matola e Boane, tem registado um nível baixo. As chuvas não têm sido suficientes para aumentar o caudal”, explicou-nos Eduarda Ferrão, uma portuguesa que nasceu em Maputo. “As restrições de água implementadas agora vão até outubro, considerada a época seca e está controlada”, continuou, referindo-se às horas diárias em que a água não corre nas torneiras. Para isso, Maputo , Matola e Boane arranjaram uma solução que passa pelo armazenamento de água.
“A água é fornecida em dias alternados para os bairros de Maputo e as outras cidades. Os prédios têm tanques que conseguem armazenar água. Quem vive em moradias tem tanques de menores dimensões e a população que vive nos subúrbios guarda a água em recipientes. Alguns têm furos que lhes permite não terem problemas”, descreveu, abordando posteriormente o seu caso.
“Eu, por exemplo, vivo num prédio antigo cuja capacidade do tanque é mais reduzida. Como solução a comissão de moradores propôs um horário de fornecimento de água que foi aceite pelos moradores. Portanto não há grandes implicações no dia a dia”, garantiu, sendo aqui a maior diferença relativamente à situação vivida na Cidade do Cabo.
Para Eduarda Ferrão, não há “há qualquer dúvida de que, de um modo geral, a população está sensibilizada para este problema”, colaborando ativamente na economia da água. Também “o governo está a trabalhar no sentido de trazer água de outra barragem, a de Corumane, mas ainda vai levar algum tempo até a tubagem ficar pronta. Penso que então o problema ficará resolvido”, disse, confirmando a informação avançada pelo Notícias ao Minuto no primeiro artigo em que abordou o tema.
Curiosamente, o país, que vive com falta de água, tem também sofrido com água a mais. As cheias não têm ajudado a terminar a seca. “Infelizmente as chuvas que têm caído aqui no sul, nem sempre caem no sítio certo, na barragem dos Pequenos Libombos, que fornece a água para esta zona. As cheias têm ocorrido no centro e norte do país, portanto não pode resolver o problema da seca que acontece no sul”, disse. “Sei que tem causado sérios problemas porque cai em zonas em que há população menos favorecida, com habitações precárias e que o governo tem procurado realocá-las noutros locais”, concluiu
“Infelizmente as chuvas que têm caído aqui no sul, nem sempre caem no sítio certo, na barragem dos Pequenos Libombos", explicou Eduarda Ferrão© Notícias ao Minuto
Se não quer viver dias semelhantes aos aqui relatados, o melhor é ter atenção ao que faz a este 'ouro transparente'. Lembre-se, “os recursos não são inesgotáveis”.
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