Paisagem da região Centro não deixa esquecer incêndios de outubro de 2017

A paisagem de vários concelhos do interior da região Centro não deixa esquecer a tragédia dos incêndios de outubro de 2017, seja porque resistem, de pé, árvores queimadas, seja pelas inúmeras casas ardidas, apesar da reconstrução realizada.

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Lusa
13/10/2019 06:21 ‧ 13/10/2019 por Lusa

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Incêndios

 

Em Tondela, distrito de Viseu, como em Tábua, já no território de Coimbra, vencem-se quilómetros e quilómetros, serra acima, serra abaixo, vales profundos ou aldeias empoleiradas nos montes e uma mesma realidade: o fogo correu por ali, há dois anos, sem que nada lhe travasse o ímpeto. E a devastação ficou, no terreno e na memória.

Maria da Piedade, de 83 anos, viu o fogo levar-lhe a casa de dois pisos, habitação em cima, lagar de azeite e espaço para animais no piso térreo, em Ermida, às portas da sede de concelho, Tondela. Ali, num dos municípios com mais casas consumidas pelas chamas - quase 400, de primeira ou segunda habitação e devolutas, dados da autarquia - a idosa não esconde a satisfação pelo novo lar, agora só de um piso, construído de raiz.

"É baixinha e não é nada como a que eu tinha, mas estou contente. Sempre me a fizeram, ao menos não fico na rua. Gosto mais porque é rasteirinha para eu poder viver e mexer-me, porque se fosse alta custava mais a subir as escadas", declarou.

"Fiquei prejudicada, mas graças a Deus sempre me fizeram um teto para eu viver", notou Maria da Piedade, lembrando que a habitação original "era muito maior", mesmo se a reconstrução incluiu um anexo, compensando a área perdida com a passagem do edifício principal para apenas um piso térreo, com cozinha aberta à sala, um quarto e casa de banho.

"Não ficou nada prejudicada com o que se passou, antes pelo contrário. Tem aqui uma casa muito mais prática para a idade dela", contrapôs o filho Júlio, que, com a irmã Leonor, acompanhou sempre a mãe, "ora em casa de um, ora em casa de outro" ao longo de quase dois anos, até Maria da Piedade ter recebido, em julho, as chaves na nova habitação, uma das 121 construídas de raiz ou reconstruídas quase na totalidade em Tondela.

"O que efetivamente ninguém paga é o valor sentimental, não ficou com um único pedaço para se recordar", enfatizou Júlio, que agora testemunha o regresso de Maria da Piedade à normalidade possível.

Ainda em Ermida, mas mais afastada do centro da aldeia, Encarnação Marques, de 71 anos, recebe a reportagem da Lusa também na sua casa nova. Logo para começo de conversa, enaltece as alfaces semeadas no estreito canteiro que ladeia o muro da casa e que partilham o espaço com uma fileira de jovens cedros.

Do alpendre, a vista alcança povoações em redor, campos agrícolas, mas também os restos da floresta que por ali existiu.

Fica a ideia de que Encarnação, vestes de negro cerrado e com os filhos emigrados longe, mais do que esperar que os cedros cresçam para, como diz, ficar a salvo dos olhares exteriores quando se senta à soleira da porta, pretende isolar-se no seu novo canto, remoendo, ainda hoje, a tristeza de ter perdido o marido, de doença súbita, pouco tempo depois dos incêndios de outubro de 2017.

"Gosto da minha casa e estou contente com a casa. Falta-me cá é a minha primeira companhia, é só isso que me faz mais tristeza", afirmou, emocionada, a idosa.

"Estou bem, a casa é jeitosa, é rés-do-chão, também já não tenho forças nas pernas para subir, estou contente", acrescentou.

Para além da dor de perder a casa e tudo o que nela tinha, Encarnação Marques suportou, ao longo do período "muito longo" de quase dois anos em que esteve sem casa própria, o calvário (inimaginável para quem mora em meio urbano, com transportes públicos) de ter de se deslocar "todos os dias, a pé" da casa de uma filha numa localidade próxima, onde passou a residir.

Ao todo, seis quilómetros, ida e volta, "uma hora de caminho para baixo, outra para cima", para tratar dos seus animais "que não tinham morrido" no incêndio.

De Tondela para Tábua, no vizinho distrito de Coimbra, há quem ainda hoje continue sem casa e sem apoio para reconstruir. Como Rosa Peres, que se habituou ao longo de mais de 20 anos a chamar de sua a casa onde vivia com o marido e um filho com deficiência, até esta ser destruída pelas chamas.

Como, formalmente, a moradia é propriedade do pai de Rosa, conta como segunda habitação deste e o processo foi chumbado, a candidatura rejeitada, consequência de uma análise "inflexível" perante a letra da lei, denuncia Nuno Pereira, do Movimento Associativo de Apoio às Vítimas de Incêndios de Midões (MAAVIM).

A casa onde Rosa morava está tal e qual como no dia em que foi consumida pelo fogo, sem telhado, paredes despidas e um amontoado de pedras e ferros retorcidos no interior.

No local apenas se mantém uma pequena cadela a proteger, mais pelos latidos do que pela presença física, a ruína que restou, enquanto a família de Rosa - que tem o seu pai doente e a mãe, acamada, a cargo - ocupa uma casa emprestada por uma filha.

"Para a reconstrução desta [a casa onde Rosa residia] bastava fazer a aceitação da escritura para o nome da filha, neste momento o pai até já enviou esse documento a dizer que aceitava, porque fizeram isso a outras pessoas. É isso que não se compreende, aqui é um caso até de negligência, porque estamos a falar de uma família numa situação débil que até tem um miúdo com problemas, o que ainda é mais grave", frisou Nuno Pereira.

"Tem que se cumprir a lei, é óbvio, mas depois tem de se vir ter com as pessoas para saber o que precisam e qual é a situação de cada um, porque é diferente", assinalou o dirigente do MAAVIM.

Uns quilómetros mais adiante, quase na fronteira com o município de Oliveira do Hospital, há um íngreme caminho a descer, em terra batida, por onde Nuno Pereira conduz a reportagem da Lusa à propriedade de um casal belga, ali estabelecido há 21 anos.

Como centenas de outros proprietários em Tábua, Leen Van Melle e o marido, ambos reformados, viram a sua casa, localizada no sopé da encosta, "no melhor sítio do mundo", desaparecer com as chamas.

Com a diferença que, face à burocracia nacional, o casal optou por reconstruir a habitação com meios próprios e a indemnização recebida da seguradora, fugindo assim à tipologia e ao tipo de construção imposto pelo plano de reconstrução.

A casa, em pedra grossa, ainda está longe de estar concluída e Leen, depois de ter passado quase um ano a viver com o marido numa tenda a lembrar as dos índios norte-americanos, acabou por construir, à mão, um abrigo em adobe - técnica que envolve a utilização de terra, misturada com cal e água - onde ambos residem provisoriamente, rodeados de árvores mas longe de pinheiros e eucaliptos.

"Depois do fogo, vamos reconstruir a nossa casa. Tivemos sorte, tínhamos seguro e podemos reconstruir ao nosso gosto. Outras pessoas não, têm apoio, mas têm casas muito mal construídas e com materiais que não queriam. E agora temos uma nova floresta a crescer", enfatizou.

Leen transborda energia e boa disposição e quando questionada pela Lusa onde vai buscar essa alegria, aponta a "flora muito bonita" da região que a acolheu, lembrando uma pequena flor cor-de-rosa que reapareceu na paisagem "cinzenta" logo após os incêndios de 2017 e se transformou em panaceia contra esses tempos de "energia muito baixa".

"A flora diz tudo. Só precisa de sol, bom ar, água e amigos, muitos amigos. É muito importante", argumentou.

Manta de eucaliptos aviva memória dos dias em que o "diabo andou à solta"

As chamas começaram já a noite do dia 14 de outubro de 2017 tinha começado a cair. Deflagrou nas freguesias vizinhas de Longos Vales e Merufe. Quando chegou à aldeia de Bela saltou o rio Minho e atingiu a Galiza. O incêndio foi dado como extinto no dia 16, mas deixou um rasto de destruição em várias das 24 freguesias de Monção, no distrito de Viana do Castelo.

Longos Vales, MerufeBarbeita e Bela foram das mais atingidas.

"Foi num ápice. A velocidade era tal, cerca de 30 a 40 quilómetros por hora. Ardia mais pelo ar do que pelo chão. Pensei que ia acabar o mundo, que não nos íamos salvar", disse hoje à Lusa o presidente da Junta de Freguesia de Bela, que viu 95% da sua área da aldeia ser consumida pelo fogo.

Passados dois anos, Luís Cunha disse sentir-se "frustrado e impotente" por ver os cerca de 500 habitantes da aldeia, na maioria idosos, "completamente assustados" com a "invasão de eucaliptos".

"Até ao momento não houve nenhuma intervenção de ordenamento florestal. Onde existiam árvores autóctones neste momento proliferam eucaliptos. Há eucaliptos por todo o lado, até junto aos aglomerados habitacionais", lamentou, temendo a ameaça de "nova tragédia".

Sem recursos para "combater" a espécie, Luís Cunha sublinhou que, "se o terror voltar", dentro de um a dois anos, "será muito pior do que em 2017".

"A freguesia não tem floresta, tem uma manta de eucaliptos. Os proprietários não têm condições para limpar os terrenos. Tenho alertado várias vezes, mas a Câmara de Monção também não tem meios para poder atuar", lamentou.

Em Barbeita, a mesma queixa. O autarca, João Sousa, explicou que "os particulares nada fizeram" pelos terrenos consumidos pelo fogo de há dois anos, que agora são cobertos por "milhares e milhares de eucaliptos", a "acha certa para uma grande fogueira".

"Os eucaliptos nasceram de uma tal forma que hoje a freguesia está infestada de eucaliptos. Está pior do que antes dos incêndios de 2017. É tremendo. Não sei como nasceram tantos", desabafou.

O receio de que o "fim do mundo" volte a assolar a aldeia traz-lhe à memória o pior dia da sua vida.

"Não vou esquecer nunca a sensação de colocar a minha mulher, a filha e os netos na cave da casa e de partir, com o genro e amigos, para tentar travar o diabo que andava solta. Um monstro que devorava tudo por onde passava. Ficámos à sua mercê, cercados por fogo por todos os lados. Mas sobrevivemos", frisou.

Há dois anos, o presidente da Junta de Merufe, Márcio Alves, juntou o executivo e partiu para o terreno para ajudar bombeiros e sapadores.

Na sua aldeia "desapareceram cerca de 1.600 hectares de um total de 3.550 hectares consumidos em todo o concelho de Monção".

A casa de primeira habitação e vários armazéns e cortes destruídos pelo fogo "foram todos reconstruídos", mas "o principal" está por fazer - "a burocracia é um contratempo".

"Temos cerca de um milhão de euros aprovados em candidaturas para fazer reflorestação. A candidatura, que prevê intervir em 320 hectares, ainda está dependente de questões burocráticas e outra, de mais 100 hectares, está a aguardar aprovação", explicou.

Dois anos depois da tragédia, adiantou, "uma das candidaturas já foi adjudicada e deverá começar a ser executada este mês".

Em Longos Vales, Pedro Rodrigues tinha tomado posse da Junta de Freguesia que conquistou nas autárquicas de 2017 na véspera da chegada do fogo e não tinha tido tempo para conhecer os cantos à casa.

"Tinha a Proteção Civil em cima de mim a pedir informações, meios e apoios. Vi-me aflito", admitiu.

Na floresta, "completamente destruída", ainda "decorrem trabalhos de abate dos pinheiros queimados" e os eucaliptos vão ganhando terreno.

"A curto prazo vamos ficar invadidos de eucaliptos", referiu.

Os dias "muito complicados" de outubro de 2017 "nunca mais serão esquecidos" por terem ardido "áreas, dentro da própria aldeia, que não se pensava que pudessem arder".

"Só não ardeu mais porque a população interveio e a entreajuda foi mais forte do que o fogo", destacou.

 

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