A limpeza urbana e recolha de indiferenciados nessa autarquia do distrito de Aveiro cabe à Hidurbe, que, por estes dias, tem nas ruas do concelho 33 homens e mulheres, distribuídos por sete circuitos apoiados por veículos de diferente tipologia.
António Fernandes é um dos cantoneiros da empresa, circula por Ovar pendurado nos camiões de recolha e contou hoje à Lusa que, além do acréscimo de lixo, nota um certo retrocesso comportamental.
"Há gente que prefere deixar os sacos no chão para nem ter que tocar nos contentores, que até estão vazios, e isso só sobrecarrega quem faz o serviço e piora a higiene pública", lamenta.
Esse técnico diz que a maioria da população "não dá valor" ao seu trabalho e, por isso mesmo, apreciou o gesto de uma moradora que, há dias, cruzando-se com ele na rua enquanto um depositava o lixo e outro o recolhia, o aplaudiu com um sorriso sob a máscara protetora.
"Disse-me que há gente que só vê os médicos e bombeiros, mas que, para ela, nós também éramos 'heróis' por mantermos tudo limpo", conta António.
Fernando Neves é o encarregado da Hidurbe e reconhece que alguns operacionais "andam nervosos, fazem muitas perguntas e vão para a rua mais a medo", mas tenta convencê-los de que "não se pode entrar em pânico e que isto também é serviço público, quer os outros reparem ou não".
Garante: "A nossa missão é esta e se ninguém fizer este serviço é que as coisas tomam uma proporção completamente assustadora". Além disso, "não é assim tão mau trabalhar na rua nesta fase, porque se circula mais à vontade, não há gente mal-educada com os carros a impedirem a passagem do camião e está tudo calmo", ainda que solitário.
"Sempre seguimos muitas medidas de segurança, mas agora a lavagem das viaturas é mais frequente, a cabine de condução é desinfetada antes de se passar o camião ao turno seguinte e os homens já não podem ir sentados à frente até chegarem ao local onde começa a recolha. Vão logo pendurados na traseira, para haver menos contacto", explica.
O armazém da empresa passou a incluir uma sala de isolamento para quem revelar eventuais sintomas de covid-19 e, à porta, já não se veem tantas fardas azuis decoradas por faixas fluorescentes e bonés cinza.
"Chegava-se a ver ali 10 a 15 pessoas a conversar antes de saírem para a rua ao mesmo tempo, mas agora não há concentrações e as saídas são mais compassadas", revela.
"Parece que nos tornámos uns estranhos", complementa António.
Outro técnico da Hidurbe que reflete sobre os efeitos da quarentena é Rui Oliveira, motorista que costuma proceder à varredura mecânica no centro de Ovar.
"No século XXI ainda há muita gente a deitar lixo para o chão. A diferença agora é que, com o povo em casa, faz-se mais lixo para os contentores, mas as ruas, desertas, estão mais limpas", conta.
A mudança é evidente "na estação de comboios e nas escolas" e, ao avaliar o que a origina, Rui identifica receios e antecipa conflitos.
Por um lado, admite: "Tenho medo de contagiar a minha esposa e os meus pais. Deixámos de estar juntos ao fim-de-semana porque, como o meu pai já sofreu um enfarte e tem diabetes, e a minha mãe tem problemas de coração, prefiro não estar com eles do que arriscar-me a pô-los doentes".
A outra perspetiva é a relativa ao isolamento domiciliário: "Algumas pessoas vão 'pifar' da cabeça. Vão estar 24 sobre 24 horas com esposos e filhos, e isso ou vai correr muito bem ou muito mal".
A população vareira continuará, entretanto, "a fazer ainda mais lixo", à medida que aprofunda a arrumação de armários, guarda-fatos, etc.. Filipa Pires, chefe do setor de serviços urbanos da Hidurbe, já nota essa azáfama no centro de Ovar, Furadouro e Esmoriz, que "são as áreas mais povoadas do concelho", mas reconhece-a também nas zonas rurais, onde "as pessoas aproveitam para limpar os quintais".
É por esse acréscimo de resíduos que Rui Oliveira não vê grande lógica nos pedidos de redução das tarifas de água e recolha de indiferenciados: "Para quê? Para as pessoas se porem a gastar água como se houvesse muita no planeta? Para fazerem mais lixo sem pensar como isso nos sobrecarrega a nós e aos aterros? Para chegarmos a um ponto em que não se consegue limpar tudo em condições e, além da covid, ainda ficamos com outros milhares de vírus?".
António também pensa nessas coisas quando está em casa, mas na sua rota de equilibrista entre Cortegaça e Esmoriz diz-se "concentrado só no trabalho". Passou a recolher os sacos soltos de braço esticado, segura os contentores pelas pegas laterais para evitar tampas e confessa: "Não está a correr mal e até temos o trabalho mais desimpedido, mas, se eu pudesse escolher, preferia tudo com a confusão que estava antes. Era melhor sinal".
O novo coronavírus responsável pela pandemia de Covid-19 surgiu em dezembro na China e já infetou mais de 480.000 pessoas em todo o mundo, das quais mais de 22.000 morreram.
Em Portugal, já provocou 60 mortes e mais de 3.500 infetados, sendo que a 17 de março o Governo declarou o estado de calamidade pública em Ovar e dois dias depois todo o país entrou em estado de emergência.