Nos últimos dias, a disciplina de Educação para a Cidadania granjeou de renovada atenção depois de noticiado um manifesto, assinado por quase 100 personalidades, que defende a "objeção de consciência" dos pais e encarregados de educação relativamente à frequência da cadeira pelos seus filhos.
O Notícias ao Minuto falou sobre o tema com Helena Ferro de Gouveia, que trabalhou em vários países em projetos de combate ao discurso de ódio e processos de paz, identificando aqui a especialista em temas internacionais uma “mimetização de fenómenos a que já assistimos noutras sociedades, nomeadamente a norte-americana e a brasileira”.
A também comentadora e colunista acredita que os signatários assumem uma “posição dogmática” em relação ao ensino obrigatório, algo “preocupante numa sociedade que se quer livre”.
Por outro lado, disse Helena Ferro de Gouveia, o caráter pluridisciplinar da disciplina, que inclui módulos como Direitos Humanos, Segurança e Defesa Nacional, Voluntariado ou Ambiente, é reduzido “à questão da sexualidade” [Educação para a Igualdade de Género, Saúde e Sexualidade], num manifesto “populista e lesivo para escola pública”, onde “é claro” que existe agenda política.
Custa-me ver professores universitários, como muitos que assinaram o manifesto, que tenham tão pouco respeito pelo conhecimento científicoQual é a sua opinião sobre este abaixo-assinado?
Eu estive a ler o manifesto e considero que houve aqui uma tentativa de reduzir uma disciplina que exalta a cidadania, que tem diversos objetivos curriculares - nomeadamente no desenvolvimento das competências pessoais, sociais, de promoção do pensamento crítico -, e procura-se reduzir essa disciplina à questão da sexualidade. Quando nós olhamos para o programa e para os temas que são abordados - e que passam, sobretudo, por questões de Direitos Humanos, que são fundamentais, que passam por questões de educação ambiental, que é uma preocupação cada vez mais corrente, que passam por educação para os media, que passam por literacia financeira, portanto, tudo questões fulcrais para a cidadania -, procurar abreviar a disciplina à questão da sexualidade parece-me que é redutor.
A sexualidade será, por assim dizer, a única questão que é ligada a uma potencial ameaça doutrinária nas linhas orientadoras da disciplina?
Não vejo nada de doutrinário nas linhas orientadoras. É preciso recuar um bocadinho para perceber que houve um grupo de trabalho para desenvolver os conteúdos desta disciplina. Um grupo de trabalho que foi pluridisciplinar, há conhecimento científico que não é só das áreas das ciências sociais, por isso custa-me ver professores universitários, como muitos que assinaram o manifesto, que tenham tão pouco respeito pelo conhecimento científico. Eles, sim, adotaram uma posição dogmática e isso parece-me preocupante numa sociedade que se quer livre, que se quer moderna, que ser tolerante, que se quer aberta, que se quer inclusiva.
Acredita que este tipo de posição pode abrir um precedente perigoso em relação ao ensino público com programa obrigatório?
Eu não acredito em escolas ‘à la carte’, senão estaríamos a abrir, precisamente, os tais precedentes. Isso é desvirtuar tudo o que se entende por ensino. Os pais preocupados com determinadas questões podem perfeitamente, no seu papel de família, desenvolver esses aspetos. Ninguém impede um pai de levar a criança à missa, se é esta questão que preocupa. Agora, na escola pretende-se que se dê outras visões do mundo. Parece-me fundamental.
Como caracterizaria esta tomada de posição do ponto de vista dos direitos individuais da criança?
A objeção de consciência que é invocada neste manifesto não faz sentido do ponto de vista jurídico. A objeção de consciência é sempre para o próprio. Neste caso, nós teríamos pais ou encarregados de educação a invocar um direito que é um direito individual.
Arriscamos que um pai que seja terraplanista não queira que o filho tenha a disciplina de GeografiaNão é aplicável a terceiros?
Não é aplicável a terceiros. É um precedente, os pais quererem-se imiscuir desta forma no currículo escolar. Arriscamos - e isto quase em anedota - que um pai que seja terraplanista [que defende que o planeta Terra é plano] ou criacionista [conceção segundo a qual Deus produziu o mundo] não queira que o filho tenha a disciplina de Geografia, de História ou de Biologia. Aqui levado ao extremo, claro, mas permitiria isto. Mas a minha questão é que se parte do pressuposto errado. Esta disciplina é consensual por essa Europa fora: falamos de cidadania, de vivência em conjunto, de criar uma sociedade melhor.
Como se educação para a cidadania e liberdade de pensamento fossem mutuamente exclusivas.
Pelo contrário, um dos objetivos desta disciplina é precisamente promover o pensamento crítico. Eu acho que, de alguma forma, estamos a entrar numa polémica que é populista, que é lesiva para a escola pública e para a própria democracia. E é isso que me preocupa, ver um conjunto de pessoas que eu respeito, pelas suas carreiras, pelo que fizeram… a perceção que tenho, além desta visão redutora, é que talvez não tenham lido o próprio currículo da disciplina.
Poderá esta disciplina estar a ser utilizada em prol de uma agenda política?
Neste momento a sociedade portuguesa está mimetizar tendências que vêm de outras sociedades e está a mimetizar fenómenos a que nós já assistimos noutras sociedades, nomeadamente a norte-americana e a brasileira. Há aqui uma preocupação que é legítima dos educadores e dos pais, é legítimo e é incontestável, mas também há o querer impor uma posição que é baseada num dogma religioso. Atenção que eu sou católica, portanto nada me move contra o catolicismo, mas tenta-se impor um dogma em relação às questões de sexualidade. A grande questão aqui é reduzir-se uma disciplina que é vastíssima.
Há outra questão relevante que é a da interculturalidade. Não deixa de ser estranho, num país que se recusa a ver-se como racista, ao mesmo tempo não quer trabalhar temas de interculturalidade e de existência de culturas e de outras influências no nosso próprio país.
É claro que há uma agenda política, é notória. Há aqui uma procura de um conservadorismo. E que também se nota, de alguma forma, se nós olharmos para quem assinou este manifesto: sobretudo homens brancos de uma certa idade. Há 88 homens, 13 mulheres, não há diversidade cultural e, tirando a assinatura de alguém ligado à esquerda, são tudo pessoas de direita e direita conservadora.