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"Na transição para o digital há um risco específico para as mulheres"

Estivemos à conversa com Lina Coelho, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que está a estudar o impacto da crise desencadeada pela Covid-19 nas mulheres e no trabalho.

"Na transição para o digital há um risco específico para as mulheres"

A pandemia do novo coronavírus, além da crise de saúde pública e económica, veio agudizar as desigualdades de género, colocando em risco os avanços até aqui conseguidos. O papel social da mulher como cuidadora está no centro nevrálgico de uma nova onda de dificuldades que poderão surgir no rescaldo da crise, destacando a necessidade do estudo e atribuição de um valor económico às tarefas de cuidado.

Lina Coelho, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que está a estudar o impacto da crise nas mulheres e no trabalho, falou sobre o assunto com o Notícias ao Minuto.

A especialista sublinhou que, mais do que uma "crise com rosto de mulher", esta é uma crise que expõe "a desigualdade nas exigências do cuidado, que penalizam as mulheres". Lina Coelho refere, ainda, a questão da digitalização, onde "há um risco específico para as mulheres".

Recorde-se que a igualdade de género e os impactos socioeconómicos da Covid-19 estiveram em discussão num seminário europeu, tendo a ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, admitido que o impacto da pandemia é desigual nos homens e nas mulheres, sendo as últimas as mais prejudicadas.

Esta crise tem um rosto de mulher por vários motivos. Prendem-se muito com a função primordial que as mulheres continuam a desempenhar, que é esta função de prestadoras de cuidados, quer a título remunerado - normalmente, mal -, quer no cuidado não pago, no trabalho doméstico

A crise pandémica tem “rosto de mulher”, alertou a ONU. É um alerta que é feito desde o início da pandemia, e que agora é apontado por vários estudos. Por outro lado, no ano passado, os países com líderes femininas tiveram taxas de transmissão mais baixas e são amplamente elogiados. É uma dicotomia da desigualdade?

É uma pergunta difícil de responder, mas, de facto, a crise tem o rosto do cuidado. Esta crise é de saúde pública, mas foi e está a ser uma crise do cuidado, porque obriga-nos a tomar consciência de que o cuidado sustenta as nossas sociedades. O cuidado é o pilar no qual assenta o funcionamento da economia, da sociedade, etc.

Sendo a mulher a cuidadora…

Exatamente. Quer no trabalho não pago, em casa, quer no trabalho pago, as mulheres suportam o desempenho da esmagadora proporção da prestação de cuidado. Isso faz com que numa situação de crise elas estejam especialmente sobrecarregadas, quer no contexto doméstico, mas também no mercado de trabalho. Embora de formas diversas, atenção, não há um padrão.

Temos as mulheres da Saúde, dos cuidados aos idosos, dos cuidados a pessoas com deficiência, etc., que estão a passar uma provação enorme porque a exigência que o trabalho lhes impõe em termos emocionais, psicológicos, é brutal. E muitas dessas mulheres são as mulheres que recebem um salário mínimo porque desempenham funções de ajudantes de lar, de técnicas operacionais na Saúde, etc., são muitos milhares.

Excluindo aqui o trabalho não regularizado…

Sim, claro, obviamente, nestes setores a informalidade e o trabalho precário são muito presentes. Principalmente para as mulheres. E depois o outro lado da Economia, a da prestação de cuidados pessoais: cabeleireiros, esteticistas, spa, atendimento ao público, que, à exceção dos supermercados e hipermercados, em períodos de confinamento estão parados. Como muita da sua atividade também não é inteiramente regular, são extremamente penalizadas.

Portanto, de facto, esta crise tem um rosto de mulher por vários motivos. Os motivos prendem-se muito - ou essencialmente mesmo - com a função primordial que as mulheres continuam a desempenhar, que é esta função de prestadoras de cuidados, quer a título remunerado - normalmente, mal -, quer no cuidado não pago, no trabalho doméstico. E aí a questão ganha uma proporção exorbitante, onde Portugal se destaca muito no contexto europeu, porque a desigualdade de horas diárias de trabalho doméstico entre mulheres e homens é das maiores da União Europeia.

Estar num mesmo espaço doméstico a tentar trabalhar e prestar cuidado a uma criança - uma ou várias - é uma coisa impossível de fazer. Conheço mulheres nessas circunstâncias que trabalham de noite, por exemplo

O teletrabalho, da forma como ainda é feito, sem regulamentação e sem as devidas estruturas de apoio (crianças, deficientes, idosos) colocou mais pressão sobre as mulheres?

Naturalmente! O teletrabalho logo à partida também é uma desigualdade, não é para todas, não é? As que têm a possibilidade de praticar teletrabalho… naturalmente, quando são mães de crianças pequenas ou quando têm a seu cargo o cuidado a pessoas dependentes torna-se num binómio impossível. É um nível de exigência impossível, porque a função de apoio às crianças e aos dependentes recai sobre as mulheres. Estar num mesmo espaço doméstico a tentar trabalhar e prestar cuidado a uma criança - uma ou várias - é uma coisa impossível de fazer. Conheço mulheres nessas circunstâncias que trabalham de noite, por exemplo.

Um impacto que ainda será maior para as mães solteiras.

Ah, sim, claro. Obviamente, a dureza desta situação é tremenda em situações de monoparentalidade, seja ela masculina ou feminina, mas cerca de 90 % dos casos de monoparentalidade são femininos.

Existem dados sobre o impacto da crise entre as mulheres das várias etnias ou será esse um dos efeitos ainda não visíveis?

Portugal não tem dados, não é? Portanto, nós nunca conseguimos ter informação precisa sobre os efeitos por etnia ou por raça. Mas sabemos algumas coisas, sabemos que as mulheres de etnias diferentes, em Portugal, ocupam situações especialmente desvantajosas no mercado de trabalho. Estão normalmente presentes, precisamente, nas tarefas de limpeza, no serviço doméstico, de comércio a retalho, vendas ambulantes, etc. Não havendo dados, tudo leva a crer que terão sido fortemente penalizadas.

No caso das empregadas domésticas, por exemplo, foram especialmente afetadas. Não é que as pessoas tenham deixado de precisar do seu trabalho, mas dada a necessidade de isolamento social, muitas famílias dispensaram as empregadas domésticas porque ela podia ser um foco de contágio. Há muitas situações deste tipo, de mulheres que foram dispensadas e que tinham um contrato informal e que, portanto, ficaram sem qualquer tipo de rendimento. A questão da limpeza e da higienização tornou-se crucial. Estas mulheres desempenham um papel essencial, mas têm uma situação particularmente vulnerável no mercado de trabalho. E, na verdade, há uma desproporção muito grande de mulheres negras e imigrantes nestas tarefas, sobretudo, nas maiores cidades. 

Portanto, embora não haja dados, nem estudos específicos, é de esperar que estas mulheres tenham sido especialmente afetadas, embora o emprego nessas áreas tenha aumentado.

A digitalização vai suprimir postos de trabalho, em alguns setores e algumas faixas do mercado de trabalho, e são áreas onde as mulheres estão muito presentes

No que diz respeito à recuperação de emprego, estão as mulheres com mais dificuldade em regressar ao trabalho?

A recuperação do emprego depende muito da rapidez e dos setores que recuperam. O emprego masculino e feminino não está distribuído igualmente por todos os setores. Tem que haver aqui uma sensibilidade a quais são os setores que têm capacidade de recuperação, porque isto vai impactar diferentemente homens e mulheres. Basta que todo o setor turístico não tenha recuperado ao mesmo ritmo que os restantes setores da economia para as mulheres ficarem para trás.

Depois convém ter em conta uma outra questão: há riscos específicos para as mulheres na recuperação, desde logo, porque estamos em aprofundamento e intensificação do processo de digitalização. Estamos a comprar mais online, há mais gente em teletrabalho, educação à distância, consumo de bens culturais à distância. Estamos numa transição abrupta - e forçada pelas circunstâncias - para a economia digital, que também é um dos pilares do Plano de Recuperação e Resiliência. Há aqui um risco específico para as mulheres.

Porquê?

Porque a digitalização vai suprimir postos de trabalho, em alguns setores e algumas faixas do mercado de trabalho, e são áreas onde as mulheres estão muito presentes. O trabalho administrativo, muito trabalho de atendimento a clientes, no comércio a retalho, nos serviços públicos, etc. A digitalização tem de continuar, mas ameaça postos de trabalho e as mulheres estão menos preparadas que os homens no domínio digital. Não só por causa do percurso escolar - as áreas das tecnologias são predominantemente masculinas.

Em Portugal, esta é a única área que continua a ser esmagadoramente masculina. Portanto, há aqui um risco específico, elas têm menos formação, menos competências, menos à vontade com as tecnologias de informação e comunicação (TIC) e a digitalização pode constituir uma ameaça específica para o emprego feminino. Vamos ver, não é absolutamente claro, mas tudo aponta nesse sentido.

Que medidas consideraria prioritárias para mitigar esse impacto?

É fundamental que todas estas medidas incluam uma preocupação de discriminação positiva relativamente às mulheres, tendo em conta este diagnóstico, que é claro e é unânime, neste momento, de que há este risco específico. É necessário assegurar - seja pela via da formação, de segregação das profissões - que os incentivos para a digitalização incorporem esta obrigatoriedade de incluir as mulheres neste setor.

Há uma outra ameaça, então, além da discriminação em função dos direitos parentais?

Eu diria que, na verdade, há aqui uma tripla ameaça: a desigualdade nas exigências do cuidado, que penalizam as mulheres (estima-se que haja uma diferença diária de quase duas horas em prestação de cuidados entre mulheres e homens, que se agrava ao fim de semana); a questão da digitalização, que pode constituir uma ameaça; e há questão da precariedade e da informalidade no mercado de trabalho, que é uma tendência geral e que afeta especialmente os jovens e desproporcionalmente as mulheres. Elas são mais facilmente dispensadas....

Nós temos hoje na população ativa em geral 150 mulheres com formação superior por cada 100 homens

Essa questão tem a ver com formação?

Não, não. Nós temos hoje na população ativa em geral 150 mulheres com formação superior por cada 100 homens. Nas faixas etárias mais novas, até aos 35 anos, este número aumenta para cerca de 170. Portanto não há um défice de formação das mulheres, no domínio da educação a desigualdade é inversa. Portugal é, provavelmente, o terceiro país da OCDE onde esta desproporção a favor das mulheres é maior. Não falta formação às mulheres portuguesas. É uma questão de padrões de segregação tradicionais. As mulheres evitam as profissões das TIC, que são as que hoje criam mais emprego, objetivamente. É uma questão de papéis sociais de género, de representações e funções sociais que esperam que as mulheres desempenhem as funções de cuidado, não só na vida pessoal e familiar, mas também na sociedade.

Há uma dupla discriminação. Há uma segregação vertical de tal forma que as mulheres não atingem os lugares de topo nas carreiras. Elas não chegam lá e recebem menos por isso. Isso acontece em todos os domínios. O Estado emprega cerca de 62 % de mulheres no total, uma clara maioria de mulheres, mas quando chegamos às posições de topo são menos de 30 %. Há este problema de segregação vertical, as mulheres estão lá mas não conseguem chegar ao topo. Isso, em média, significa menores remunerações. A diferença entre salário base ganho é muito maior nos homens porque eles ocupam as profissões e os cargos onde há lugar a complementos salariais. Por outro lado, há uma segregação horizontal, ou seja, os setores em que as mulheres trabalham são, em geral, mais mal pagos. Tudo o que é setor do cuidado e do atendimento às pessoas é, em média, mais mal pago, do que as profissões industriais e técnicas, etc. 

Aqui o que se assume é que as mulheres têm um conhecimento inato, não precisam de aprender nada. Para limpar, para cuidar, para tratar dos idosos e para atender clientes, não é preciso aprender nada. Isto é um equívoco terrível.

Leia Também: Australianas manifestam-se contra desigualdade de género

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