Horas extra e abuso psicológico. Um jovem transgénero no mercado laboral
Tiago Gomes, jovem transgénero de 23 anos de idade, relatou ao Notícias ao Minuto como têm sido as suas primeiras experiências profissionais.
© D.R.
País Mês Pride
A integração no mercado laboral é frequentemente difícil. É o momento em que cada pessoa passa a assumir responsabilidades que são maiores do que si próprias e a ter de responder, de uma forma mais séria, pelas suas ações e decisões. Porém, há um fator que pode levar a que a inserção profissional seja ainda mais desafiante: a falta de tolerância dos outros para com a diferença.
Tiago Gomes é transgénero e sentiu esta realidade 'na pele'. Natural do Seixal, desde pequeno "sentiu que algo não estava bem" no seu "corpo" e na "imagem que via no espelho", o que o motivou a passar por um processo de transição de género, revelou em entrevista ao Notícias ao Minuto.
"Eu comecei a minha transição de género a partir do momento em que alguém do meu grupo de amigos me fez essa observação", contou o jovem, agora com 23 anos de idade, cuja identidade de género nunca levantou "muitos problemas de aceitação" no contexto dos seus círculos mais próximos, nomeadamente entre os seus amigos, explicou.
Mas o mesmo não aconteceu na maioria dos contextos profissionais com os quais tem contactado. Depois de ter trabalhado como Bombeiro Voluntário e de ter sido obrigado a abandonar o curso de Psicologia no ISPA (Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida), por falta de condições financeiras, o início de carreira de Tiago Gomes foi algo atribulado.Em muitas situações foi-me dito que a minha forma de ser, de estar ou de falar não eram correspondentes às de um homem
"Quando comecei o processo de transição de género estava a trabalhar numa empresa de telemarketing, como comercial de vendas à distância", explicou ao Notícias ao Minuto. Segundo o Tiago, a empresa "nunca colocou nenhum entrave" pelo facto de ele ser transgénero, ainda que "nem sempre seja possível controlar o pensamento de todos os colaboradores".
O jovem, na altura com 18 anos de idade, começou por ser alvo de diversos comentários "desagradáveis" por parte de alguns dos seus colegas de trabalho. "Em muitas situações foi-me dito que a minha forma de ser, de estar ou de falar não eram correspondentes às de um homem, tal como as atividades de que gostava", confidenciou.
A situação, de acordo com o jovem, "acabaria por complicar-se", acabando por transformar-se numa "espécie de abuso psicológico". "Passou a ser diário e cada vez com comentários mais inoportunos, mais íntimos e até mesmo de caráter sexual. Acabava por sentir-me como um objeto para estas pessoas. Isso não me deixou confortável", disse Tiago. E apesar de ter tentado "falar com as chefias", de forma a denunciar a situação, considerou não ter havido "muito interesse" das mesmas em "intervirem na situação".
Algo que o motivou a procurar novas oportunidades profissionais numa outra organização. "Mais uma vez, fui sincero e perguntei se seria um entrave, por exemplo, não ter a minha documentação ainda alterada", de forma a apresentar o nome que agora utiliza, explicou. Os superiores responderam imediatamente "que não interessava o que estava no cartão de cidadão e que a empresa era inclusiva".
Não aceitaria ir contra aquilo que eu sou, contra a minha identidade de género, só porque me estão a pedir
Porém, após a formação inicial a que esteve sujeito, Tiago acabaria por ter, novamente, uma experiência menos positiva. Foi colocado a trabalhar para uma "operação" cujo cliente era "uma empresa de outsourcing", na qual viria a desempenhar funções de apoio ao cliente, também à distância.
Empresa essa que terá indicado, de acordo com os relatos deste jovem, que "não pretendia" que o colaborador "atendesse os clientes com o nome Tiago, mas sim com o nome que constava no cartão de cidadão". Situação que "originou uma situação bem mais complexa", com a organização para a qual trabalhava a pedir ao jovem para que acedesse a este pedido da tal empresa de outsourcing.
"Nós não concordamos com isto, mas é o cliente que nos está a pedir. Portanto temos de o fazer. Ou aceitas, ou não aceitas", terão dito as chefias, de acordo com os relatos do Tiago. "E eu disse que era óbvio que não. Não aceitaria ir contra aquilo que eu sou, contra a minha identidade de género, só porque me estão a pedir", confidenciou.
Ao recusar, foi imediatamente informado de que não estava, então, "autorizado a estar na operação", tendo-lhe sido pedido que fosse "para casa" até ser encontrada uma "nova solução". No entanto, foi ainda informado de que as suas ausências ao trabalho não seriam "justificadas" e, muito menos, "pagas".
Foi-me barrada a entrada na empresa no dia seguinte
"Aqui eu percebi que talvez houvesse uma tentativa, por parte da operação, de conseguirem ter uma justa causa para o despedimento por falta de comparência no local de trabalho. E eu disse que tal não iria acontecer. Disse que, no meu horário do trabalho, iria lá estar novamente para tentar resolver a situação. E assim o fiz", explicou-nos o Tiago.
"Foi-me barrada a entrada na empresa no dia seguinte", prosseguiu o jovem, que acabaria por exigir discutir a questão com o responsável pela operação da qual fazia ainda parte. Depois de lhe dizerem que "não havia ainda uma solução", acabaria por alegar que aquilo que a empresa estava a fazer ia além "de uma questão de preconceito", sendo inclusivamente "ilegal".
"Referi que naquele momento existia uma lei que dizia justamente que não podem exigir que eu atenda um cliente com o nome que está no meu cartão de cidadão quando eu me identifico com outro, independentemente da documentação ter sido alterada ou não [...]. Disse que tal não estava correto e que tinha toda uma série de argumentos para avançar com um processo", contou o Tiago ao Notícias ao Minuto.
A responsável acabaria, imediatamente, por se disponibilizar a "resolver a situação". Segundo este jovem, acabaria por ser transferido para uma outra operação, ainda dentro da mesma organização, onde já não lhe seria requerido responder pelo nome que constava no seu cartão de cidadão.
Chegado a esta nova equipa, o colaborador disse ter notado que todos os funcionários "eram pessoas com características muito específicas: pessoas de outras raças ou etnias, pessoas com deficiência, e pessoas com limitações motoras ou visuais", por exemplo. Tendo confrontado os colegas com esta sua ilação, os mesmos terão confirmado que "já existiam ali comportamentos preconceituosos devido a [...] tudo o que eram as características individuais" de cada um.
Era sempre a mim que me eram colocados entraves quando precisava de alguma folga extra ou de ver alguma situação ao nível de saúde esclarecida
E a verdade é que a promessa que lhe tinha sido feita anteriormente ficaria longe de ser inteiramente cumprida. Em todos os "quadros" e "documentos" onde constava a sua identificação pessoal, a mesma era feita com recurso ao nome, desatualizado, que ainda constava no seu cartão de cidadão. "Comentários bastante desagradáveis", alguns deles "abusivos a nível psicológico, mais a puxar para a dimensão sexual", também terão afetado o jovem durante todo o período que passou a trabalhar nesta nova equipa, de acordo com os seus relatos.
Tiago Gomes reportou ainda ser-lhe frequentemente pedido "que fizesse horas extra ou que facilitasse na hora de almoço a outras pessoas", embora não visse "o mesmo a acontecer com outros colegas". "Era sempre a mim que me eram colocados entraves quando precisava de alguma folga extra ou de ver alguma situação ao nível de saúde esclarecida", acrescentou ainda o jovem.
O acumular de todas estas experiências profissionais negativas acabaria por ter graves consequências ao nível da sua saúde mental, contou o Tiago ao Notícias ao Minuto. "Acabei por pôr uma baixa, não estava mesmo em condições para trabalhar. Eu ficava extremamente ansioso e nervoso simplesmente de pensar que tinha de ir trabalhar e tinha, inclusivamente, ataques de pânico quando entrava na empresa, só de pensar nisto e por não saber o que esperar das pessoas".
Depois de tudo isto, o jovem acabaria por "sair da empresa", tendo posteriormente sentido a necessidade de "fazer terapia" e de "tomar medicação" para ajudar com a sua recuperação. Só depois retomaria a busca por um novo emprego, tendo abraçado um novo projeto em junho de 2019, em plena celebração do mês Pride.
Uma experiência profissional que, felizmente, tem sido bastante diferente de todas aquelas que teve anteriormente. Tiago Gomes é agora colaborador de pós-vendas na IKEA Portugal e, também, coordenador dos embaixadores de Diversidade, Igualdade e Inclusão da empresa. Segundo o jovem, a organização foi capaz de comprovar, ao longo destes quase três anos de colaboração, que "há interesse, inclusão e diversidade. Há bastantes coisas em que ainda temos que trabalhar, mas está a acontecer", apontou.
Na IKEA sempre me foi prestado bastante suporte para ser quem eu realmente sou, sem me serem colocadas regras ou ideais
O colaborador da empresa nórdica relatou a existência de uma "mentalidade completamente diferente" entre os seus atuais colegas, comparando com aqueles que tinha tido nas empresas onde tinha estado anteriormente. E, para além do Tiago, existem ainda mais dois outros funcionários transgénero no contexto das operações da IKEA em Portugal.
"Na IKEA sempre me foi prestado bastante suporte para ser quem eu realmente sou, sem me serem colocadas regras ou ideais", contou o jovem, que apontou a "sensibilização" como a "chave" para a existência de um ambiente laboral mais "inclusivo".
Contactado pelo Notícias ao Minuto, Cláudio Valente, responsável de People & Culture da IKEA Portugal, disse que a empresa assume esse mesmo intuito de "criar um ambiente de trabalho totalmente inclusivo para que todos os colaboradores, nomeadamente todos os colaboradores LGBTI+, se sintam bem-vindos, respeitados e valorizados". Algo que é feito, nomeadamente, "através de iniciativas internas e externas cujo objetivo é criar um ambiente seguro e de partilha".
Na perspetiva de Tiago Gomes, jovem que vivenciou na primeira pessoa as consequências de atitudes discriminatórias em contexto laboral, as empresas têm, efetivamente, "um papel muito importante na consciencialização" contra práticas desta natureza, nomeadamente "através dos seus próprios produtos".
Na ótica do jovem, as organizações devem começar por apostar em contratar "pessoas que pertençam a grupos minoritários", como é o caso dos indivíduos LGBTI+, e que "têm alguma dificuldade em arranjar um trabalho estável" porque "são discriminados pelas suas características individuais". Se "nos mostrarmos inclusivos perante estas minorias, vamos também conseguir, talvez, fazer com que as pessoas que delas fazem parte se sintam realmente incluídas", concluiu o jovem colaborador da IKEA Portugal.
Nos mais recentes mapa e índice anuais da ILGA Europe, que indicam como os vários países europeus se posicionam em matéria de direitos LGBTI+, Portugal ocupa atualmente o 10.º lugar, com a taxa de respeito dos direitos humanos destes indivíduos a fixar-se nos 62,03%. Face ao ano de 2021, o país caiu cinco pontos percentuais no ranking.
Leia Também: Ser drag queen. "No futuro, talvez não estejamos só nos espaços noturnos"
Descarregue a nossa App gratuita.
Oitavo ano consecutivo Escolha do Consumidor para Imprensa Online e eleito o produto do ano 2024.
* Estudo da e Netsonda, nov. e dez. 2023 produtodoano- pt.com