Tabu e preconceitos: O psiquiatra é um 'bicho papão'?
Em entrevista a dez psiquiatras, a opinião é unânime: suicídio e doença mental são temas tabu e existe também um preconceito generalizado em relação aos psiquiatras.
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"O suicídio é a última fronteira do ponto de vista existencial, do ponto de vista religioso. Deixa sempre nas pessoas que sobrevivem sentimentos de ambivalência muito grandes, por um lado sentimentos de grande perda e saudade, e, por outro lado, sentimentos de raiva por não se perceber porque é que a pessoa fez aquilo”, afirma Miguel Xavier, coordenador nacional das políticas de saúde mental e psiquiatra há 33 anos.
Carlos Braz Saraiva, psiquiatra há 38 anos e primeiro presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia, também destaca que quase toda a gente conhece alguém que se suicidou e isso é quase sempre um assunto tabu nas famílias. “Aliás é relativamente comum numa história clínica, as pessoas omitirem isso”, frisa o especialista.
E o tabu parece estender-se aos profissionais que trabalham com este problema de saúde pública: "Quando um médico se suicida, há um silêncio ensurdecedor. Ninguém tem coragem de falar no assunto. Se assim é com os médicos, o que fará na população geral", afirma Inês Homem de Melo, psiquiatra há 5 anos.
A origem deste tabu em torno do suicídio não é difícil de enquadrar. Miguel Xavier recorda que, “há umas décadas, o suicídio era considerado um crime, e, antes do 25 de abril, estava no Código Penal, de maneira que não podia haver um reporte de suicídio, além de que religiosamente era um crime teológico”. Segundo o psiquiatra, havia ainda um outro problema com os reportes de suicídio individuais que era o facto de as companhias de seguro não darem o seguro de vida quando havia uma morte por suicídio, o que fazia com que se evitasse ao máximo que houvesse um reporte.
Paulo Barbosa também lembra que, devido ao tabu em torno do suicídio, esta causa de morte é subnotificada nas estatísticas. “Existe um background cultural do qual não nos conseguimos abstrair. Somos um país que tem uma tradição religiosa que coloca o suicídio como pecado e podemos encontrar sítios onde não é disponibilizado serviço fúnebre para uma pessoa que morreu por suicídio”, indica o psiquiatra há 6 anos.
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Ao tabu do suicídio, junta-se o da doença mental, nomeadamente a depressão. Paula Valente, psiquiatra há 25 anos, afirma que “a doença mental em geral, e o suicídio e a depressão, em particular, continuam a ser um tabu e alvo de um grande estigma pela sociedade”. “Ouvimos coisas como ‘Não tenho tempo para estar deprimida, isso é para os fracos’, e isto é um preconceito transversal à sociedade que atrasa muito o tratamento das próprias pessoas, dos familiares e dependentes, porque uma pessoa que pense dessa maneira não leva o filho nem a mulher ao psiquiatra, e mais facilmente lhe diz ‘Deixa-te disso e anda para a frente’”, comenta a especialista.
De acordo com a OMS, os problemas de saúde mental são altamente prevalentes. Cerca de uma em cada oito pessoas no mundo vive com uma perturbação mental.
Segundo Diogo Guerreiro, psiquiatra há 18 anos, pensar que uma doença psiquiátrica pode ter o suicídio como desfecho é algo que assusta bastante e “por isso é que existem tantos preconceitos que na prática são respostas fáceis para dúvidas e medos que temos”. ‘Fez isto porque era fraca, matou-se porque era maluco…’. Acabamos por afastar o medo que temos com uma explicação fácil e preconceituosa, basicamente, com defeitos do outro. A nós nunca nos pode acontecer”, afirma o psiquiatra.
Paulo Barbosa concorda que “a doença mental é muitas vezes vista como uma fraqueza, uma falta de capacidade para lidar com as questões do dia a dia e um sinal de que a pessoa é inapta para viver”. Catarina Agostinho, psiquiatra há 11 anos, partilha que às vezes os doentes dizem que achavam que a doença mental era preguiça, era não ter vontade de trabalhar ou ser fraco, até passarem por isso e depois percebem que não tinha nada a ver com a sua vontade e que na verdade estavam mesmo muito doentes. Também Carlos Braz Saraiva conta que, decorridas algumas semanas ou meses, pessoas que tiveram ideação suicida ficam surpreendidos por terem estado “no fundo do poço como estiveram”. Por isso, “temos de interpretar a vida como ciclos, com fases menos boas, mais negras, e outras de maior esplendor, e isso é humano”, frisa o psiquiatra.
Miguel Xavier alerta ainda para a associação errónea entre violência e doença mental: “Sempre que há um caso de violência, começo logo a receber telefonemas nos quais me perguntam se eu acho que pode ser um caso de doença mental. Mas digo sempre que vou à televisão e aos jornais que quando há violência associada à doença mental, normalmente os doentes mentais são vítimas, não são agressores”.
Ao tabu do suicídio e da doença mental, soma-se o preconceito em relação aos psiquiatras. “Os doentes acham que nós somos uns bichos papões”, afirma Inês Homem de Melo, e Sónia Farinha Silva, psiquiatra há 6 anos, concorda que “os próprios psiquiatras são alvo de estigma porque as pessoas acham que como são os que tratam os ‘malucos’ também não devem ser muito bons da cabeça”. “As pessoas nem percebem o que andamos a fazer nem percebem o que é um doente mental, que muitas vezes é visto como uma pessoa perigosa, estranha, má”, lamenta a psiquiatra.
Sofia Morais, psiquiatra há 10 anos, também lamenta o grande desconhecimento da população em geral relativamente à psiquiatria e às patologias que trata e a ideia de que são doenças pouco prevalentes, “quando é completamente o oposto”. “Há muito esta ideia de que se vou a um psiquiatra é porque estou doido, ou seja, a população desconhece que a insónia ou a ansiedade (que se pode manifestar por um aperto na garganta) são motivos para se ir a uma consulta de psiquiatria”, comenta a especialista.
Artigo assinado por Eudora Ribeiro, jornalista e estudante de doutoramento em Estudos dos Media e do Jornalismo.
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Se estiver a sofrer com alguma doença mental, tiver pensamentos auto-destrutivos ou simplesmente necessitar de falar com alguém, deverá consultar um psiquiatra, psicólogo ou clínico geral. Poderá ainda contactar uma destas entidades:
SOS Voz Amiga (entre as 16h e as 24h) - 213 544 545 (Número gratuito)
- 912 802 669 - 963 524 660
Conversa Amiga (entre as 15h e as 22h) - 808 237 327 (Número gratuito) e 210 027 159
SOS Estudante (entre as 20h e a 1h) - 239 484 020 - 915246060 - 969554545
Telefone da Esperança (entre as 20h e as 23h) - 222 080 707
Telefone da Amizade (entre as 16h e as 23h) – 228 323 535
Todos estes contactos garantem anonimato tanto a quem liga como a quem atende. No SNS24 (808 24 24 24 - depois deve selecionar a opção 4), o contacto é assumido por profissionais de saúde. A linha do SNS24 funciona 24 horas por dia.
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