"No final de uma aula de Português Língua Estrangeira para alunos Erasmus, no segundo semestre do ano letivo passado, uma jovem afegã que acabara de se juntar ao grupo esperou que os colegas saíssem e sorriu antes de mo dizer no seu inglês fluente, como uma evidência indiscutível: “Something is for sure: classrooms look the same all around the world”.
Perante os desastres climáticos, a pobreza extrema, a ditadura ou a guerra, o apoio inicial necessário aos deslocados é um apoio de emergência: segurança, alimentação, saúde, abrigo. São precisas respostas que, numa determinada situação aguda, efetivamente salvem as vidas das pessoas. Como aconteceu em Portugal no verão e outono de 2021, com a chegada de refugiados afegãos; como sucedeu a partir de fevereiro deste ano de 2022, com a chegada de pessoas deslocadas da guerra da Ucrânia.
Há, todavia, um outro momento, mais exigente e mais complexo: passada a fase da sobrevivência, assentada a poeira da emoção, porventura assumindo-se uma certa resignação depois do medo e do sobressalto, é essencial a reconstrução do projeto de vida da pessoa refugiada e da sua família.
O Ensino Superior não está habitualmente no centro das prioridades do novo contexto, sobretudo porque as necessidades materiais imediatas do quotidiano se sobrepõem ao investimento a longo prazo na educação. Trata-se de um equilíbrio difícil, este, entre a autonomia (primeiramente financeira) da pessoa e da família no país de acolhimento, e a aposta no futuro, cuja prosperidade depende também do nível de qualificação dos trabalhadores.
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidades para os Refugiados (ACNUR), em 2019 apenas 1% dos refugiados tinha acesso à educação superior. Atualmente essa percentagem está nos 6%, mas o objetivo do ACNUR é o de alcançar 15 by 30: isto é, que em 2030 cerca de 500 000 pessoas refugiadas estejam a estudar nas universidades dos países de acolhimento.
Da experiência tida com a admissão e integração de estudantes em situação de emergência humanitária na Universidade Católica Portuguesa (Lisboa, Braga, Porto e Viseu), em particular neste ano, deixo cinco substantivos e um lugar:
1. Subjetividade. Em contexto humanitário, os critérios de objetividade não são tudo. A justiça alcança-se na compreensão da subjetividade daquele que está diante de nós, entendendo que cada pessoa é singular, que cada contexto é único, procurando responder a cada situação específica. É necessário dedicar especial atenção às mulheres e mães que querem retomar os estudos, para que não fiquem para trás.
2. Criatividade. Quantos de nós fugiríamos de uma guerra com o diploma de conclusão do Ensino Secundário na mochila, por exemplo? Como pedir certificados a uma universidade que foi bombardeada? Enquanto Portugal não adere ao Passaporte Europeu de Qualificações para os Refugiados, as instituições de Ensino Superior podem e devem colocar a “burocracia ao serviço do Bem”, e encontrar dentro da lei soluções criativas para a admissão dos estudantes.
3. Celeridade. Mesmo que seja para dizer um “não”, é preciso dar respostas atempadas e cumprir prazos. A celeridade é uma forma de respeito pelo outro. A fragilidade mental e social da pessoa refugiada leva a que situações que para o cidadão comum são de certa normalidade, sejam sentidas como agressões, acentuando o tenso limbo emocional em que vivem.
4. Clareza. É preciso que a comunicação seja completa, simples, direta; que seja oral e escrita. A oralidade é importante porque reforça o vínculo pessoal e dá rostos aos dois lados da comunicação, mas a escrita permite ao estudante ler, reler e traduzir, independentemente da língua franca utilizada. É preciso dar tempo para que o estudante assimile a informação, e contar que repita as perguntas, porque é habitual a necessidade de confirmação.
5. Liberdade. O outro que acolhemos não é um outro idealizado. Na hospitalidade real o outro torna-se este, de uma ideia passa a um indivíduo. Estoutro é esse ser humano, concreto, que acolhemos também na sua liberdade de recusar a nossa oferta, de desistir, de escolher outro caminho, de duvidar, de ser imperfeito. Na Universidade e em todas as áreas da integração de refugiados, como pessoas, comunidades e como País, fazemos a nossa parte sem esperar nada em troca.
Estas reflexões são sobre uma experiência em construção, e por isso sempre à procura de aperfeiçoamento: reconhecer a singularidade do outro, flexibilizar procedimentos, acelerar respostas, clarificar dúvidas, estar ao serviço.
Desde logo não é uma evidência nem é indiscutível, mas num certo sentido é verdade: as salas de aula são iguais em todo o mundo.
Elas são lugar – e tempo – de dignidade, de liberdade, e de esperança."