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Restos de naufrágio na costa basca contam tráfico de escravos em Portugal

O Portugal do século XVI está retratado num livro publicado em Espanha sobre os destroços de um navio que naufragou na costa basca carregado com mercadorias para comprar escravos em África, como manilhas de latão.

Restos de naufrágio na costa basca contam tráfico de escravos em Portugal
Notícias ao Minuto

10:34 - 11/03/23 por Lusa

País Escravatura

"Iturritxiki", da arqueóloga Ana María Benito Domínguez, publicado no ano passado pela Sociedade de Ciências Aranzadi e tema de um artigo recente do jornal El Pais, tem como ponto de partida as escavações arqueológicas submarinas na última década do século XX na baía de Getaria, no País Basco espanhol (norte de Espanha), cenário de vários naufrágios ao longo da história por causa dos ventos e dos temporais no mar cantábrico.

A maioria dos destroços retirados do mar faziam parte da carga de um navio mercante fretado pela coroa portuguesa em Antuérpia (atual Bélgica) e que se afundou em Getaria entre 1522 e 1524, segundo o relato do livro, que cita documentos da época, além de historiadores e outras investigações científicas contemporâneas.

A equipa coordenada por Ana María Benito retirou do mar da baía de Getaria 172 lingotes de cobre com mais de uma tonelada de peso no conjunto, caldeirões de cobre e 313 manilhas de latão (cuja composição é, em mais de 60%, também cobre) que faziam parte da mercadoria do navio fretado em Antuérpia e que teria, como primeiro destino, Lisboa, para seguir depois para a costa ocidental africana.

Em 1587, segundo documentos da época, já haviam sido recuperados na baía de Getaria lingotes e 600 "argolas" de latão (depois designadas "manilhas") que iam a bordo do barco naufragado.

Todo este cobre - em lingotes ou em objetos manufaturados - era encomendado e comprado por Portugal "de forma massiva" no centro da Europa para o comércio em África, sobretudo, para comprar escravos, como se lê nas páginas de "Iturritxiki".

As "manilhas" eram uma espécie de pulseiras, já usadas desde séculos anteriores em África como moeda de troca, como adorno ou para dotes, mas também como símbolo de poder e prestígio.

"Classificadas como moeda primitiva", as manilhas eram um "meio de pagamento do óleo de palma, do ouro, do marfim e, principalmente, de escravos em África", descreve o livro.

Foram usadas em África como moeda de troca até ao século XX e hoje ainda surgem representadas no dinheiro - em moedas e notas - de países africanos.

De toda a carga de cobre que levava o barco naufragado em Getaria no século XVI, as centenas de manilhas de latão eram "talvez a mais lucrativa" porque custavam aos portugueses "uns dez reis" na Flandres e "multiplicavam por 12 vezes o seu valor" em África, onde as vendiam por 120 reis, escreve Ana María Benito em "Iturritxiki".

Era então possível comprar um escravo por oito a dez manilhas na costa ocidental africana, segundo autores e documentos citados no livro.

"No reinado de Manuel I [rei de Portugal entre 1495 e 1521], calcula-se que se importaram desde a Flandres cerca de 1.250 toneladas de manilhas e recipientes para o comércio africano. Neste período, chegavam a África cerca de 130.000 peças por ano", acrescenta o texto.

No século XVI, lembra o livro, "a coroa portuguesa tinha o monopólio desta empresa", o comércio de escravos, "embora genoveses e castelhanos aparecessem frequentemente associados aos lusitanos neste tráfico".

Por serem tão valiosas, o transporte das manilhas fazia-se "com grande confidencialidade", mas é possível encontrar referências em "documentos internos" e sabe-se hoje que, por exemplo, quando saiu para a viagem de circum-navegação, em 1519, Fernão de Magalhães levava nos seus barcos 2.000 manilhas de latão e 2.000 manilhas de cobre para trocas comerciais.

"As manilhas são relativamente comuns nos destroços de naufrágios entre o século XVI e XIX em toda a Europa e África", mas as de Getaria são as mais antigas conhecidas até agora, segundo "Iturritxiki".

Além da mercadoria de cobre, foram encontrados outros objetos do mesmo barco, como alfinetes, um dedal, armas (pequenos canhões) e instrumentos de navegação.

Foi também encontrada uma moeda de Manuel I de Portugal que levou à conclusão de que, "provavelmente, o comerciante e parte da tripulação eram portugueses".

Os lingotes de cobre estavam marcados com o escudo da família Fugger, comerciantes e banqueiros de Augsburgo, no sul da Alemanha, e "os principais fornecedores de matérias-primas para a coroa portuguesa", prossegue o relato de "Iturritxiki".

Os destroços deste naufrágio enquadram-se "na primeira era da globalização" e refletem "a atividade comercial e colonial do mundo conhecido, onde se relacionavam dois governos poderosos, Alemanha e Portugal, através da cidade portuária com mais vitalidade da Europa: Antuérpia", lê-se no livro.

"O desastre do naufrágio provocou o congelamento de um momento da história. Os objetos recuperados supõem um símbolo das relações comerciais intercontinentais no Século de Ouro", prossegue o texto, que acrescenta que o périplo que a embarcação deveria ter feito "traçava perfeitamente uma das vias mercantis mais importantes do século XVI e a principal levada a cabo pelos portugueses: o comércio de cobre e latão desde a Europa para África e Ásia".

Em declarações à Lusa, Ana María Benito explicou que as escavações em Getaria foram feitas na última década do século XX e antes deste livro, que escreveu na sequência de um convite da Sociedade de Ciências Aranzadi, tinha publicado "alguns artigos científicos curtos" sobre o tema.

Os objetos recolhidos na baía de Getaria estão atualmente num depósito de materiais arqueológicos e de património em Irún, no País Basco, não estando expostos ao público.

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