Criança exposta a violência durante anos "devia ter sido ouvida"
A coordenadora da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica defendeu hoje que a criança que viveu anos num contexto de violência que acabou com o pai a matar a mãe (em 2019), devia ter sido ouvida.
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País Criança
Em declarações à Lusa, no Tribunal da Relação do Porto, onde decorre a conferência "A EARHVD composição, objetivos, recomendações, repercussão da análise feita e seu impacto nas várias entidades", e lembrando que "a audição da criança está consagrada na lei", Raquel Desterro considerou que a criança de 15 anos "devia ter sido ouvida".
"Essa é uma grande recomendação que [a equipa] faz. Sim [devia ter sido ouvida]. Ainda para mais esta já tinha 15 anos e viveu, vítima, o flagelo da violência doméstica. E a escola também devia ter sinalizado a situação. Porque, neste caso concreto, os órgãos de polícia criminal, nomeadamente a PSP, fez três sinalizações: sinalizou a CPCJ [Comissão de Proteção de Crianças e Jovens], a escola e as autoridades de saúde", disse.
Segundo o mais recente relatório da EARHVD, publicado a 15 de maio, "apesar das diversas sinalizações por diversas entidades, a CPCJ teve uma intervenção temporal muito limitada e escassa na proteção" de uma criança, que, quando o pai matou a mãe, tinha 15 anos.
"Embora considerasse que a criança se encontrava em perigo, nunca procedeu à sua audição individualizada", lê-se no relatório.
À Lusa, e convidada a comentar este caso, Raquel Desterro foi perentória: "Os alertas estavam lá".
"Relatórios há em que as coisas aconteceram, mas era completamente imprevisível que se tivesse dado conta que acontecessem. Há outros, como é este caso, em que houve mais do que alertas e infelizmente, devo dizê-lo, as autoridades dos vários quadrantes não tomaram em devida conta os sinais que essa família dava", referiu.
Segundo a informação disponível, a criança viveu exposta a "um padrão de violência persistente, psicológica, física e sexual" entre os progenitores, "mais frequentemente entre 2016 e 2019", ano em que o pai acabou por matar a mãe na residência de ambos, depois de mandar o filho ir ao supermercado.
Na análise ao caso, a EARHVD diz que a criança chegou a ir para uma resposta de acolhimento de emergência e depois para uma casa de abrigo, com a mãe, na sequência de um episódio de violência doméstica, e que "foram identificadas, de forma persistente, a existência de negligência física e emocional" em que o menor se encontrava.
A primeira sinalização aconteceu em 2015, pela escola, por causa de "absentismo e negligência".
A partir de 2017, a PSP sinalizou a criança quatro vezes, duas por episódios de violência doméstica, uma vez porque estava com o pai quando este agrediu fisicamente um motorista de um transporte público e acabou detido e, por último, na sequência do homicídio da mãe.
Os serviços de ação social também sinalizaram a criança em 2017, na sequência do acolhimento na resposta de emergência, porque o pai "não constituía alternativa protetora".
Segundo o relatório, perante as várias sinalizações, foi aberto um processo em 2015 e em 2017 foi subscrito um acordo de promoção e proteção, mas "face ao incumprimento reiterado" por parte da mãe e do pai da medida de promoção e proteção, a CPCJ arquivou o processo e enviou o caso para o Ministério Público.
Hoje, em conversa com a Lusa, a coordenadora da EARHVD aproveitou para falar da importância da prevenção, sublinhando que "o trabalho da equipa é precisamente fazer a análise retrospetiva de casos já transitados em julgado por forma a prevenir outros, quaisquer outros, semelhantes ou diferentes".
"Esta situação, evidentemente, preocupa toda a equipa. Daí que façamos recomendações com o único objetivo de sinalizar situações e alertar as várias entidades e autoridades no sentido de que só com uma ação conjunta e articulada entre todas as entidades é possível combater o flagelo da violência doméstica em Portugal, na Europa e no Mundo", referiu.
Raquel Desterro frisou, ainda, que as recomendações da equipa são "alertas e críticas construtivas" sejam quais forem as autoridades visadas, desde, exemplificou, "o Governo, as autoridades judiciárias, a Procuradoria, CPCJ".
"A nossa preocupação é fazer. Tomáramos nós não fazer recomendações", concluiu.
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