O conflito parental é o tema de um seminário que a SCML está a organizar durante o dia de hoje, em Lisboa, no qual o diretor de Infância, Juventude e Família da instituição aproveitou para chamar a atenção para as mudanças nos últimos 25 anos em matéria de promoção e proteção na área da infância.
Segundo Rui Godinho, nessa altura, quando começou a trabalhar na área, os casos de crianças em perigo eram "quase coincidentes na totalidade" com a carência económica. Hoje, há complexidade social que trouxe uma divergência e uma pluralidade muito maior.
Deu como exemplo que quando era diretor de uma casa de acolhimento e havia reuniões de pais, só apareciam mães, enquanto atualmente "os pais e as mães estão por igual".
Aquilo que, por um lado, classificou como uma "boa notícia" trouxe, por outro, uma maior complexidade aos processos.
"Temos o maior envolvimento parental dos pais, que é uma coisa boa, mas isso traz uma maior complexidade porque há uma gestão de expectativas, às vezes até mais que isso, há questões narcísicas associadas que depois complexificam muito a situação", apontou.
Afirmou, por isso, que, na sua opinião, existe uma "certa benevolência social" em relação ao conflito parental.
"Há uma aceitação de uma coisa pouco aceitável porque as crianças ficam desfeitas pelo conflito parental, o conflito de lealdade, o sofrimento que gera ter um dos cuidadores, ou ambos os cuidadores na maior parte dos casos, a esquecerem-se da criança na sua zanga conjugal", criticou.
Rui Godinho alertou que o conflito parental "cria marcas muito profundas e muito sofridas para as crianças", alertando que tem impactos não só imediatos, mas também futuros, nomeadamente na forma como "aquela criança vai ser como futuro pai ou como futuro cônjuge".
Para o responsável, trata-se de um "tema decisivo", sobre o qual deveria haver um "olhar muito mais efetivo" e mais exigente, recusando a ideia de que "as coisas se vão resolvendo com o tempo" ou de que as crianças consigam encontrar um ponto de equilíbrio.
"Esse ponto de equilíbrio é à conta do sofrimento da criança", sublinhou, acrescentando que lhe "irrita solenemente" que digam que as crianças são resilientes.
"As crianças não têm que ser resilientes. As crianças não têm que sofrer com esta questão e nós temos que garantir que protegemos as crianças desse sofrimento porque esse sofrimento deixa marcas traumáticas muito grandes para a sua vida", referiu.
Disse ainda que, atualmente, "entre 35 a 50% dos processos de promoção e proteção são de violência doméstica" e que, por isso, "o sistema foi quase capturado pela violência doméstica", uma realidade transversal que não tem a ver com carência económica.
A procuradora-geral regional de Lisboa, por seu lado, admitiu ter andado "enganada uma série de anos" sobre qual é e onde está o desafio, tendo defendido que o "desafio não é a criança", mas sim "a família da qual ela faz parte".
Helena Gonçalves pediu, por isso, que haja recursos humanos em número adequado e que os meios que auxiliam na preparação da criança sejam os adequados, com qualidade e rigor do ponto de vista técnico.
A psicóloga e docente da Universidade da Madeira, Dora Pereira, alertou para a forma como as crianças são envolvidas na conflitualidade dos pais e de como são obrigadas a tomar partido por um dos progenitores.
A especialista deixou a questão de o conflito parental poder ser uma forma de mau trato psicológico, tendo em conta que "quando os conflitos intensos persistem ao longo do tempo perturbam muito gravemente a criança".
"Ao invés dos pais serem figuras securizantes, há aqui um efeito muito paradoxal em que eles tornam-se fonte de instabilidade e fonte de insegurança", salientou, destacando que as consequências comportamentais que isso trará no futuro.
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