Faculdade de Direito de Lisboa debate desafios da litigância climática

O ainda "incipiente e impreciso" direito climático, a possibilidade de a inação climática ser inconstitucional e o ativismo climático, são desafios da área jurídica emergente da litigância climática, que será hoje debatida em lisboa.

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© BRYAN R. SMITH/AFP via Getty Images

Lusa
11/12/2024 07:56 ‧ há 3 horas por Lusa

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Clima

Carla Amado Gomes, Heloísa Oliveira e João Tomé Pilão, professores e investigadores do 'Lisbon Public Law Research Centre' da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) organizam hoje a conferência 'A litigância climática em Portugal: os primeiros passos'.

 

O evento decorre na FDUL de forma presencial e online ao longo de todo o dia e pretende promover uma reflexão e discussão sobre um tema jurídico emergente, que tende a ter cada vez mais presença nos tribunais portugueses, ajudando a orientar advogados e magistrados nos 'caminhos jurídicos' das ações relacionadas com estas matérias e "formar massa crítica em Portugal" sobre o tema, explicaram à Lusa as duas organizadoras.

"Não podemos ignorar que a lei, não só em Portugal, mas em geral, ainda está pouco adaptada para lidar com as alterações climáticas", disse Heloísa Oliveira, que entende que aqui reside um dos principais desafios da litigância climática em Portugal, mas não só.

A investigadora aponta o paradoxo de nestes processos se aplicar sobretudo direito internacional, e bastante limitado, recorrendo a instrumentos como o Acordo de Paris ou as convenções internacionais de direitos humanos, mas em tribunais nacionais, aqueles que estão acessíveis a particulares, empresas e organizações, levando os tribunais a ter que decidir com base em normas jurídicas que não trabalham habitualmente.

Para Carla Amado Gomes a questão "não é tanto a falta de direito, é o tipo de direito que o direito internacional é, que é sobretudo um compromisso entre a soberania e o universalismo e que, portanto, tem que fazer muitas cedências, não pode dar demais sob pena de não ver a luz do dia".

"Direito vai havendo, mas é um direito muito impreciso. É muito dificil estabelecer quais são as obrigações concretas de cada Estado perante o seu próprio povo e perante a comunidade internacional", disse a investigadora, lembrando o processo de consulta aos Estados em curso no Tribunal Internacional de Justiça, da ONU, que corre a pedido da Assembleia Geral das Nações Unidas e que pretende clarificar quais são as obrigações dos Estados em matéria de alterações climáticas.

Heloísa Oliveira não tem dúvidas sobre a necessidade da criação de um tribunal internacional especializado de jurisdição universal, para evitar que os tribunais internacionais sejam apenas um último recurso depois de esgotadas todas as instâncias nacionais.

Mantendo tudo como está, Heloísa Oliveira não tem dúvidas de que "nenhum tribunal tem a possibilidade de fazer a ponderação de interesses e encontrar soluções estratégicas para estes problemas".

"A litigância climática é uma reação da sociedade à inércia das entidades públicas, sem dúvida alguma, à insuficiência ou incipiência do direito, mas tem limites evidentes, sobretudo nos tribunais nacionais, porque não é capaz de efetivamente contribuir, mas apenas de mediaticamente e juridicamente chamar a atenção para a conclusão óbvia que é a de que os Estados não estão a cumprir", disse.

A investigadora entende ainda que "estamos ainda muito longe" de ter esgotado a margem para legislação restritiva para proteção do clima.

"Quanto mais tempo passa, mais será juridicamente legítimo fazer a restrição de direitos, mas tal como o Tribunal Constitucional alemão disse, não agirmos agora sabendo que mais tarde vamos ter que ser muito restritivos é inconstitucional, porque não estamos a proteger direitos no futuro. Estamos a permitir a situação atual sabendo muito bem que a consequência vai ser ter que restringir a liberdade no futuro", afirmou.

Mas pode a situação de emergência climática justificar tudo? Sobre os ativistas climáticos que a invocam como justificação para ações disruptivas da ordem pública e que têm sido alvo de condenações em tribunal, Carla Amado Gomes defendeu que "estas pessoas sabem que estão a violar a lei, por mais que a Constituição diga que há direito de manifestação" e mesmo admitindo a linha de pensamento jurídico que os considera "crimes por convicção", argumentou que não deixam de ser crimes, o que coloca questões aos tribunais sobre os "precedentes sociais" que estão a criar.

"Um tribunal que pegue nesses primeiros casos tem forçosamente de pensar que está a dar um sinal e ou dá um sinal de dureza para desincentivar ou dá um sinal de brandura aceitando a figura do tal crime por convicção. (...) Se forem juízes sensíveis à causa, tenderão a levar a coisa para o crime por convicção ou poderão considerar causas atenuantes. Se quiserem dar um exemplo de firmeza, as sentenças poderão ser efetivamente mais duras. E aí depende da resiliência dos ativistas continuar ou não por esses caminhos", disse.

Carla Amado Gomes entende que existe margem para litigância de particulares contra o Estado nos tribunais portugueses, para exigir, por exemplo, a regulamentação num prazo razoável de leis como a Lei de Bases do Clima.

Já a viabilidade das ações depende da capacidade de "construir o objeto do processo de maneira a que o tribunal veja ali obrigações suficientemente precisas" e da apresentação dos processos nas jurisdições corretas, considerou Carla Amado Gomes, que diz não encontrar outra palavra que não seja "incompetência" para classificar o que aconteceu com a ação da associação Último Recurso", entregue nos tribunais comuns e que já foi alvo de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ).

Em primeira instância, o tribunal recusou apreciar o caso, o que motivou o recurso para o STJ que, perante uma ação que exigia ao Estado que regulamentasse a Lei de Bases do Clima, exigiu, por seu lado, à associação ambientalista, que apresentasse ela própria 50 medidas para regulamentação da lei e combate às alterações climáticas.

"O comentário que me merece uma decisão dessas é incompetência. (...) O Estado não poderia estar sentado naquele banco dos réus, teria que estar noutra jurisdição. O STJ escusava de ter manchado ainda mais a já má imagem que este caso vai deixar, porque evidentemente nunca se pode remeter para o próprio autor a definição da decisão, porque senão nem eram precisos tribunais", criticou a investigadora.

"Isso para mim é uma confissão de inaptidão e também por isso estamos a promover a conferência, no intuito de serviço público, de tentar sensibilizar as pessoas e os juízes para que isto é uma questão emergente que vai começar a aparecer, que era escusado envergonhar a justiça portuguesa com decisões deste género, sobretudo ao nível de um tribunal superior", concluiu a investigadora.

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