A acusação do Ministério Pública (MP) sobre o caso, conhecida na quarta-feira, "é apenas um passo", assinalou Flávio Almada, um dos porta-vozes do Vida Justa.
"Ver para crer" é a máxima nas comunidades da periferia, alvo de "tantas coisas" e com um histórico para provar: pessoas "mortas pela polícia" em casos semelhantes que "terminaram quase em penas administrativas", recorda.
Por oposição, "o que tem sido recorrente é que normalmente são as vítimas que estão colocadas no banco dos réus", aponta.
Isto porque -- considera Flávio Almada -- "há uma cultura de impunidade" nas forças policiais. "Não é uma questão só de balas, mas (...) já há um discurso que naturaliza e normaliza esses acontecimentos", realça.
O Ministério Público acusou do crime de homicídio, punível com pena de prisão de oito a 16 anos, o agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) que, na madrugada de 21 de outubro de 2024, baleou Odair Moniz no bairro da Cova da Moura, no concelho da Amadora, desencadeando tumultos em várias comunidades da periferia de Lisboa.
Segundo a acusação do MP, Odair Moniz - cidadão cabo-verdiano de 43 anos residente no vizinho Bairro do Zambujal -- tentou fugir da PSP e resistir à detenção, mas não se verificou qualquer ameaça com recurso a arma branca, contrariando o comunicado oficial divulgado pela polícia segundo o qual o homem teria "resistido à detenção" e tentado agredir os agentes "com recurso a arma branca".
"A questão da justiça ainda não está materializada", sublinha Flávio Almada, residente no bairro da Cova da Moura.
"Nós queremos que seja rápido, que seja feita justiça", vincou. Mas isso não chega, "é preciso também que seja feita alguma coisa para que esses casos não voltem mais a acontecer".
Para isso, é preciso um "rompimento com a tradição de impunidade que sempre acontece quando são casos que envolvem mortes de trabalhadores das nossas comunidades e até de crianças, que envolvem a polícia", acrescentou.
Ora, "para já não houve uma responsabilidade" pelo que aconteceu. "Quem foi que pagou o preço da mentira que inflamou toda a situação [na Cova da Moura, no Bairro do Zambujal e noutras zonas]? Ninguém", lembra, reiterando o apelo à demissão dos "altos cargos" da PSP que o Vida Justa reclamou logo após caso.
"Vai-se desmilitarizar a polícia, essas esquadras de fiscalização? Vai-se acabar com as zonas urbanas sensíveis? Vai-se criar políticas públicas para fazer (...) um trabalho social de prevenção?", questiona.
Flávio Almada concede que o facto de o MP ter pedido uma investigação autónoma à alegada falsificação do auto de notícia da PSP, "é importante", mas recorda que "não é a primeira vez que os autos são falsificados, não é a primeira vez que se colocam coisas estranhas nos autos".
O MP considera que o auto de notícia feito à altura dos acontecimentos "padece de incongruências e de inexatidões" relativamente à autoria e às horas a que foi elaborado.
Também a suspensão de funções do agente "é uma coisa que já devia ter sido feita", frisa Flávio Almada, lamentando que haja "polícias condenados (...) por tortura e sequestro que continuam em funções".
O MP pediu a suspensão do agente como medida de coação e também que seja aplicada uma pena acessória, já em fase de condenação, de proibição de exercício de função.
Neste momento, o agente da PSP está de baixa e sem data para regressar ao trabalho, tendo sido transferido da esquadra onde estava na ocasião em que Odair Moniz foi morto, vítima de dois tiros: o primeiro terá sido disparado a uma distância entre os 20 e os 50 centímetros e atingiu a zona do tórax; o segundo já a uma distância entre os 75 centímetros e um metro, atingindo a zona da virilha.
Já caído no chão, Odair Moniz foi atingido pelo bastão do segundo agente, que não foi acusado neste processo.
Segundo o MP, a morte terá sido provocada pela primeira bala.
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