Ainda que seja considerado um problema de saúde pública a nível mundial, o suicídio continua a ser atirado para debaixo do tapete, devido ao estigma que o rodeia. De facto, mais de 726 mil pessoas colocam termo à própria vida anualmente, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O suicídio é, além disso, encarado como a terceira principal causa de morte entre os jovens dos 15 aos 29 anos, cenário que se agrava a nível europeu.
"Atualmente, entre os jovens europeus com idades compreendidas entre os 15 e os 19 anos, o suicídio é a segunda principal causa de morte prematura", apontou o Livro Branco sobre o Bem-Estar Mental dos Jovens na Europa, lançado a 26 de fevereiro pela Fundação Z Zurique.
Em Portugal, que é o quinto país europeu com maior prevalência no que diz respeito a problemas de saúde mental, estima-se que haja pelo menos três suicídios por dia.
Face a esta conjetura, e depois de, nos últimos anos, ter visto quatro amigos colocarem termo à própria vida, o jornalista Luís Henriques Antunes decidiu lançar-se à toca do lobo e investigar um tema que, admitiu, "sempre mexeu muito" consigo. Dessa procura surgiu 'Os Labirintos Insondáveis do Suicídio', livro que reúne conversas "com os maiores especialistas portugueses do tema, referências intelectuais do meio académico católico e familiares de pessoas que tiraram a própria vida", na esperança de mostrar que é "possível as pessoas salvarem-se – basta procurarem ajuda".
O autor recordou, contudo, que "o suicídio é sempre um ato de revolta contra alguma coisa", havendo "uma doença mental por detrás em 90% dos casos". Ainda assim, as famílias também têm de ser ajudadas, uma vez que ficam mergulhadas numa "mágoa muito grande, que nunca há de passar".
Acho que as famílias e a sociedade, numa maneira geral, ainda enterram a cabeça na areia, como se nada se passasse. O que é certo é que os suicídios estão a acontecer todos os dias. Se estivermos atentos, há sempre pessoas que morrem de formas muito estranhas, e os próprios especialistas referem que há mortes não determinadas
O que é que o motivou a escrever sobre o suicídio que, apesar da informação e das ações de prevenção de que atualmente dispomos, continua a ser um tabu?
É um tabu e é um não assunto que ninguém assume, porque há ainda muito receio de ser conotado com este problema. Acho que as famílias e a sociedade, numa maneira geral, ainda enterram a cabeça na areia, como se nada se passasse. O que é certo é que os suicídios estão a acontecer todos os dias. Se estivermos atentos, há sempre pessoas que morrem de formas muito estranhas, e os próprios especialistas referem que há mortes não determinadas – alguém que pega num carro, conduz a 200 km/h e vai contra um pilar, por exemplo. É um problema que não está suficientemente debatido, nem documentado. As famílias sentem-se mal, sentem-se culpadas, envergonhadas, magoadas, e é um assunto que está completamente escondido de toda a gente.
Comecei a escrever este livro porque tive várias pessoas próximas que se suicidaram; amigos e pessoas conhecidas. Nos últimos anos foram quatro amigos. Alguns deles não deram qualquer sinal de que estavam deprimidos ou de que tinham algum problema, mas o que é facto é que colocaram termo à vida de forma muito violenta, e é muito triste.
Além disso, na minha terra natal [Vilar Formoso] há um fenómeno muito estranho, porque os suicídios são recorrentes. É uma realidade que sempre me acompanhou e que sempre mexeu muito comigo, por isso queria saber mais. Por que é que fizeram aquilo? Pessoas que tinham famílias, pessoas que os amavam – não estamos a falar de pessoas que viviam isoladas. Tinham vidas normais e, de um momento para o outro, colocaram termo à vida.
Tudo isto começou com um colega do meu pai, que era uma pessoa que criou duas filhas, fez uma vida normal e, de um momento para o outro, a família encontrou-o pendurado numa árvore. Ninguém estava à espera, mas aconteceu.
© Guerra e Paz Editores
Se quando um ente querido morre de forma natural é comum questionarmo-nos quanto ao que poderíamos ter feito de diferente, sentiu que esse sentimento era exacerbado junto das famílias com quem conversou?
Nas famílias há um sentimento de culpa e de revolta muito grande, que são os que mais prevalecem. Normalmente, não entendem porque é que aquela pessoa amada fez aquilo, aquele ato extremo. Segundo o psiquiatra Carlos Braz Saraiva, que é o grande especialista em Portugal nesta área, o suicídio é sempre um ato de revolta contra alguma coisa. As famílias apercebem-se disto e ficam muito comprometidas.
Há muitos casos de pessoas que morrem por suicídio, mas ninguém assume que, de facto, foi suicídio. Ninguém quer assumir que aquela pessoa colocou termo à vida porque não foi ajudada, ou porque não estavam atentos aos sinais que foi emitindo.
Considera que este tabu deve-se não só ao estigma associado às doenças mentais e à visão da Igreja, mas também ao medo que a sociedade ainda nutre pela morte – que é, por si só, um tabu?
Sim, sim. Em Portugal, devido aos nossos complexos judaico-cristãos, não se fala de morte. Falar de morte é um não assunto que ninguém aborda, ou poucas pessoas abordam frontalmente. Mas o que é certo é que é a única certeza que temos: um dia, haveremos de morrer todos. Devido à nossa ligação com a Igreja, não falamos de morte, e de suicídio muito menos.
Apesar de tudo, a Igreja já começa a aceitar debater estes assuntos e já não condena os suicidas ao quinto inferno. O conservadorismo ainda prevalece em muitos sítios, mas já há clérigos que têm uma visão mais humanista e reconciliadora.
Há muitos tabus que, há uma década ou duas, ninguém falava sobre eles, mas hoje em dia são assuntos correntes. Portanto, penso que o suicídio também deveria ser um assunto debatido, acima de tudo para que as pessoas que estejam a passar por um momento delicado possam ser ajudadas
Aliás, conversou com psiquiatras e especialistas no tema, mas também com pensadores jesuítas associados à Igreja Católica. Surpreendeu-o que, na generalidade, todos reconhecem que "ninguém se suicida a partir do vazio" e que, na maioria das vezes, essa decisão é tomada pela necessidade de acabar com a dor, que provém de uma doença mental?
Fiquei um bocadinho, mas as pessoas de quem obtive depoimento são pensadores, têm uma visão muito mais elaborada e complexa da vida. De qualquer forma, acho que é um bom sinal haver pessoas na Igreja que chamam os bois pelos nomes: há uma doença mental por detrás em 90% dos casos e é isso que tem de ser tratado.
O académico Abílio Oliveira disse-lhe que "não devemos esquecer que vivemos numa sociedade em que as pessoas não estão habituadas a lidar com a morte", pelo que "enquanto a morte continuar a ser escondida, a própria vida não está a ser devidamente valorizada nem olhada como deveria". É a isto que se resume? Precisamos de reconhecer que, quando falamos sobre a morte, estamos, na verdade, a falar sobre a vida?
Exatamente, e concordo plenamente com ele. Essa citação deveria estar em todas as escolas, em todas as Igrejas, em sítios públicos, para as pessoas se lembrarem de que a morte é o outro passo que demos de dar obrigatoriamente. Acho que a nossa sociedade não deve ter tabus. Há muitos tabus que, há uma década ou duas, ninguém falava sobre eles, mas hoje em dia são assuntos correntes.
Portanto, penso que o suicídio também deveria ser um assunto debatido, acima de tudo para que as pessoas que estejam a passar por um momento delicado possam ser ajudadas. Essas pessoas podem ser ajudadas e é essa a mensagem que quero deixar muito clara.
A própria saúde mental já foi (ainda mais) um tabu. Mas temos um longo caminho a percorrer, uma vez que, geralmente, só se aborda a depressão e a ansiedade.
Exatamente, mas há doenças muito mais complexas. As perturbações mentais major, que estão por detrás da maioria dos suicídios, tinham de ser recomendadas a quem esteja a passar por este processo. A questão é que são os próprios médicos que, muitas vezes, não estão atentos a estes problemas, receitam antidepressivos e pensam que, com isso, vão tratar aquelas pessoas – mas não.
Um suicida é alguém que está a sofrer de uma maneira lancinante e está a pedir ajuda. Cabe-nos a nós, sociedade, ficarmos atentos e encaminharmos essa pessoa para a quem possa ajudar. Tem de ser um psiquiatra que saiba tratar este fenómeno, porque nem todos sabem. Alguém que esteja numa aldeia do Interior ou da Beira Alta, onde é que se vai dirigir?
No livro, o psiquiatra Ricardo Coentre apontou que o doente "deve ser tratado de forma continuada, tal como se trata uma hipertensão ou a diabetes". Também há a questão de que as pessoas deixam de tomar a medicação quando se sentem melhor, ou julgam que a medicação não funciona e faz-lhes mal.
Sim, e há pessoas que nem necessitam de fármacos; se forem a uma consulta com um psicoterapeuta ou um psicólogo, conseguem reverter este tipo de situações. Agora, há casos mais graves, que terá de ser mesmo um psiquiatra a fazer todo o acompanhamento e todo o plano de tratamento, que é longo.
Chegámos ao ponto em que uma criança de 11 anos esconde isto dos pais e liga para uma linha de prevenção do suicídio. Algo de errado a nossa sociedade está a fazer
Existem vários fatores e possíveis explicações para este flagelo. Quais são, da sua investigação, os mais importantes a destacar?
Fatores são vários: há a depressão major, que está presente em quase todos os casos, mas também há sinais podem indicar perigo, nomeadamente as mudanças de comportamento, insónias, melancolia persistente, desorganização, baixa autoestima e desesperança. Ou seja, parece que há um peso sempre em cima daquelas pessoas, porque não conseguem ver que, acima da situação que estão a viver, está o sol e há escapatória. As pessoas vivem afundadas num tormento que não conseguem superar. Cabe às famílias, aos amigos e aos colegas de trabalho, ou seja, a toda a sociedade, ficarem atentos a esses comportamentos. Uma pessoa ‘normal’ e que, de repente, fica melancólica, ou começa a beber excessivamente, a isolar-se, a dizer que não está cá a fazer nada e que não tem valor deve preocupar.
Os homens, como mencionou no livro, têm mais propensão a colocar termo à vida. Isto deve-se à nossa sociedade machista e patriarcal?
Sim. Crescemos todos numa sociedade com valores muito machistas, ainda com resquícios do Salazarismo: o homem não pode dar parte fraca. São os homens que têm mais dificuldade em procurar ajuda, porque as mulheres são muito mais adultas e sabem aquilo que querem. Se estiverem deprimidas, vão procurar ajuda – os homens não. Escondem, começam a beber, tentam fugir à sua circunstância e isso, às vezes, acaba mal. Ainda sentem este grande estigma de que pedir ajuda a alguém é sinal de fraqueza, e isso não é assim.
Ao mesmo tempo, o presidente da SOS Voz Amiga também lhe deu conta de que as chamadas por parte dos jovens estão a aumentar. Poderá isto ter a ver com o contacto com vidas que não são reais nas redes sociais?
É isso mesmo e é preocupante. A linha está cada vez mais a receber chamadas de jovens, e até mesmo de crianças. Há dias, receberam uma chamada de um miúdo de 11 anos. Estava a ser vítima de bullying e queria acabar com aquele clima e com aquela dor. Ficaram muito preocupados, porque uma criança de 11 anos não deveria de estar a passar por um processo destes. Chegámos ao ponto em que uma criança de 11 anos esconde isto dos pais e liga para uma linha de prevenção do suicídio. Algo de errado a nossa sociedade está a fazer.
Será que sempre foi assim, mas agora temos mais acesso a informação e estes casos saem mais cá para fora?
Sim e não. O que o Francisco Paulino diz é que, nos últimos tempos, principalmente depois da pandemia, jovens e crianças ligam para lá cada vez mais. É assustador. Claro que há de ter influência as redes sociais e todo esse mundo virtual, que acaba mal para muita gente, especialmente para pessoas que estão ainda em formação de carácter e de personalidade, e que acabam por sucumbir a depressões.
Acho que o mundo hoje vive numa gritante falta de empatia, não há humanidade. As pessoas são cada vez mais individualistas e há quem sinta que não pertence a lado nenhum, o que pode resultar em tragédias.
As pessoas sentem-se culpadas de não terem feito nada para que aquela pessoa se salvasse, quando se sabe bem que a maior parte dos suicidas não dão qualquer sinal
Duas das familiares com quem conversou mencionaram que o luto é uma "ferida aberta que não sara". Será que a única forma de cicatrizar o luto – e, friso, não ultrapassar – é a compreensão do que motivou o suicídio por parte da sociedade?
Sim, claro. É a compreensão e, acima de tudo, os familiares também precisam de ser ajudados. Os especialistas falam nisso, que os familiares deveriam de ter o apoio de um psicoterapeuta, porque são pessoas que ficam com uma mágoa muito grande, que nunca há de passar.
Mencionou no livro que muitas famílias desistiram de contar a sua história. Contudo, é sabido que é positivo para os enlutados falar sobre a perda. O que lhe disseram?
Pois, eu tentei convencê-las com esse argumento, que falar sobre a situação seria bom. Muitas delas concordaram e disseram que sim, mas passados uns dias ligaram-me a dizer que já não queriam falar, porque a mãe, o pai ou o irmão não queriam que se falasse, por reviverem toda a dor novamente.
Trata-se de uma questão de medo de enfrentar o trauma, então?
É reviver o trauma e o sentimento de culpa. As pessoas sentem-se culpadas de não terem feito nada para que aquela pessoa se salvasse, quando se sabe bem que a maior parte dos suicidas não dão qualquer sinal.
E uma pessoa que esteja vincada nessa decisão não desiste facilmente.
Não vai desistir, exatamente. Mas, felizmente, os psiquiatras dizem que esses casos são raros. Todos os outros, os 90%, podem ser ajudados.
O sobrevivente com quem falou confessou-lhe que "todas as manhãs arranjava um motivo para não apertar o gatilho". Podemos, assim, considerar que as pessoas com tendências suicidas querem, em última instância, viver, mas precisam de ajuda e de empatia?
Exatamente! Essa pessoa foi um caso muito feliz que consegui arranjar. Tinha alguns nomes que me tinham indicado, mas as pessoas não queriam revelar a sua história, devido ao tabu. Esta pessoa, apesar de ter tido uma vida sempre muito trágica, com um pé na vida e outro na morte, finalmente percebeu que precisava de ser ajudada. É esta a mensagem que tem de ser difundida, que é possível as pessoas salvarem-se – basta procurarem ajuda.
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Se estiver a sofrer com alguma doença mental, tiver pensamentos auto-destrutivos ou simplesmente necessitar de falar com alguém, deverá consultar um psiquiatra, psicólogo ou clínico geral. Poderá ainda contactar uma destas entidades:
- SOS Voz Amiga (entre as 16h e as 24h) - 213 544 545 (Número gratuito) - 912 802 669 - 963 524 660
- Conversa Amiga (entre as 15h e as 22h) - 808 237 327 (Número gratuito) e 210 027 159
- SOS Estudante (entre as 20h e a 1h) - 239 484 020 - 915246060 - 969554545
- Telefone da Esperança (entre as 20h e as 23h) - 222 080 707
- Telefone da Amizade (entre as 16h e as 23h) – 228 323 535
Todos estes contactos garantem anonimato tanto a quem liga como a quem atende. No SNS24 (808 24 24 24 - depois deve selecionar a opção 4), o contacto é assumido por profissionais de saúde. A linha do SNS24 funciona 24 horas por dia.
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