Quatro reclusos reabilitam em Coimbra o tribunal que os condenou
António Rodrigues ouviu o juiz condená-lo a cinco anos e meio de prisão numa das salas de audiência do Tribunal de Coimbra. Hoje, o recluso a cumprir ainda uma pena total de 11 anos regressa à mesma sala, sem algemas, para ajudar a reabilitá-la.
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País Pena
As calças salpicadas de tinta branca denunciam que esteve a pintar as paredes da sala de audiências. O espaço é-lhe familiar. "Na sala dois vim buscar quatro anos e meio e na que estou a pintar cinco anos e meio. Não está a correr mal", conta à agência Lusa o recluso de 35 anos, que encontra neste trabalho uma espécie de redenção.
Ao todo, são quatro os reclusos do Estabelecimento Prisional de Coimbra (EPC) que, de segunda a sexta-feira, regressam ao espaço que os condenou para trabalhar, de forma remunerada, na reabilitação de uma sala de audiências.
A confiança dos reclusos com o chefe de guardas que coordena a brigada, Jorge Simões, é total.
Sem ser necessária vigilância contínua, a sua presença no Tribunal de Coimbra quase que passa despercebida. "Ninguém nota que são reclusos. Apenas notam quando olham para a insígnia" que Jorge Simões tem no fato-macaco que faz questão de usar, em detrimento da farda e do "peso" que ela possa trazer.
Jorge Simões, há 33 anos guarda prisional e metade da carreira ligado à formação e trabalho oficinal, olha para a atividade e para os reclusos que coordena com orgulho e fala com prazer daquilo que vão fazendo.
No verão, cinco reclusos recuperaram algumas das "salas mais pequenas do Tribunal", num trabalho que exige "um certo cuidado", respeitando-se os traços antigos, "as tonalidades" e a preservação "das pedras e dos ferros forjados".
A sala que agora estão a recuperar, uma das maiores, inclui trabalhos nos soalhos, paredes, candeeiros, bustos e pedra, e um grupo de reclusos vai criar na prisão as mesas e cadeiras onde os advogados futuramente se vão sentar, num "trabalho de detalhe, paciência e arte".
O Tribunal está satisfeito e espera que haja "disponibilidade e meios humanos" por parte do EPC para que se continuem os trabalhos de reabilitação noutras salas e gabinetes do edifício, disse à Lusa a juíza presidente da Comarca, Isabel Namora.
"Isto é uma forma de se lidar com o passado. Se estamos presos é porque cometemos algum erro. Estamos aqui para seguir em frente", salienta Paulo Pereira, de 36 anos, natural do Porto, a cumprir uma pena de 17 anos.
Para José Rocha, a cumprir uma pena de dez anos, andar por entre andaimes não é algo estranho. Aos 11 anos aprendeu "a arte de pedreiro e pintor" para ajudar os pais.
O regresso ao tribunal é o culminar de um processo de reinserção. Quanto entrou na cadeia, sentiu-se "fora do contexto", mas cedo pensou no futuro. Fez o ensino secundário, aprendeu teatro e música e colecionou "primeiros e segundos prémios" em concursos artísticos.
Não satisfeito, estudou sozinho na cela para o exame de ingresso no curso de Psicologia da Universidade de Coimbra. Acabou por ter de congelar a matrícula no segundo ano devido às muitas cadeiras práticas que tinha.
"Não houve essa abertura" para continuar e voltou-se para os trabalhos no exterior.
"Estamos a fazer as pazes com a justiça e com a sociedade. A vida é assim mesmo", afirma, sorrindo, quando pensa no simbolismo desde trabalho: "entrei no tribunal para ser condenado e entro agora no tribunal para ser libertado".
Acabando a obra, José vai estar "praticamente em liberdade" e, por entre os andaimes, já vai pensando no sonho de terminar o curso de psicologia.
Os trabalhos "são uma espécie de antecâmara para a liberdade", salienta Jorge Simões, que não vê nenhum dos reclusos que passaram pelas suas mãos a regressar à prisão. "A vida está cá fora e não lá dentro", explica.
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