A luta que, em 1974, se propôs travar é ainda o que o move. Arménio Carlos bate-se diariamente pelos direitos da parte mais frágil na relação entre capital e trabalho: os trabalhadores. E recusa baixar os braços, porque ainda há muito a fazer, como explicou em entrevista ao Notícias ao Minuto. Fique com a primeira parte*.
O gosto pelo sindicalismo e pela defesa dos direitos dos trabalhadores começou cedo? O que é que o moveu?
Desde que entrei no mercado de trabalho, em janeiro de 1974, e me apercebi das dificuldades que os trabalhadores sentiam, da ausência de liberdades, de democracia. A partir dessa vivência senti necessidade de imediatamente me envolver, desde logo, em fevereiro desse ano, na elaboração de um abaixo-assinado a reclamar melhores salários. A partir daí, fi-lo em toda a atividade no local de trabalho. E em 1985 entrei em atividade permanente no sindicato.
Porque considera ser tão importante que haja uma entidade que defenda os direitos dos trabalhadores?
Porque, num quadro em que o confronto entre o trabalho e o capital é permanente e secular, a parte mais frágil nesta relação, que são os trabalhadores, precisa de ter uma organização forte, atuante, interventiva e que corresponda àquilo que são as suas necessidades e anseios. Os sindicatos têm uma visão mais global do desenvolvimento da sociedade e da sua transformação.
Ainda estamos a sofrer o impacto do memorando assinado com a troika?
Estamos, claramente. Tivemos nos últimos anos uma política baseada na perspetiva dos cortes – nos salários, nas pensões, nos direitos – que acentuou as desigualdades, a exploração e o empobrecimento. O que temos agora é uma linha de reposição de alguns desses direitos, mas não nos podemos esquecer que estamos num processo evolutivo. É preciso que novas medidas sejam implementadas para responder a problemas fundamentais que têm de ser ultrapassados. Falo concretamente da distribuição da riqueza e da melhoria dos salários, do combate à precariedade e ao desemprego, da aposta na valorização da contratação coletiva, que está bloqueada, e da melhoria dos serviços públicos (escola pública, Serviço Nacional de Saúde e Segurança Social pública e universal).
As entidades patronais foram demasiado favorecidas no governo de Passos Coelho?
O governo PSD/CDS tomou a opção de subjugação relativamente ao que era o memorando da troika e procurou ir mais longe, numa lógica que foi muito objetiva: tudo contra os trabalhadores, tudo a favor das entidades patronais. Isso é por demais evidente.
Deu margem a que os movimentos sindicais ganhassem mais força? Foram anos de muitas manifestações e luta por parte dos trabalhadores.
A partir do momento em que fomos confrontados com o memorando da troika, fragilizando os direitos dos trabalhadores, como movimento sindical só tínhamos uma resposta a dar. Hoje é claro que não podemos deixar de valorizar a participação ativa dos trabalhadores, que nunca faltaram à chamada sempre que a CGTP o reclamou. Foi uma luta que se desenvolveu num dos períodos em que os trabalhadores foram mais afetados.
Isso refletiu-se no número de trabalhadores sindicalizados?
Numa altura em que, no espaço de quatro anos, desapareceram 540 mil postos de trabalho, 500 mil pessoas emigraram, tivemos o maior número de desempregados após a democracia e houve uma redução significativa de salários, é evidente que perdemos sindicalização. Mas lançámos em 2012 uma campanha para atingir 100 mil novos sindicalizados. Certo é que atingimos 105 mil.
O Governo não pode ser prisioneiro de pressões e chantagens"
Encarou como legítima a solução governativa encontrada para o país. Não considera que os portugueses podem entender que o seu sentido de voto foi traído?
Ao contrário do que alguns diziam, as eleições para a Assembleia da República (AR) não servem para eleger o primeiro-ministro, servem para eleger deputados. No plano da AR é que se constroem maiorias, que por sua vez definem o governo. Foi isso que se passou. É perfeitamente natural, legal e constitucional. É, aliás, exemplo de muitas situações que se passam na Europa. O sentido do voto popular foi respeitado.
Que balanço faz destes meses de governo PS?
É um balanço positivo. O facto de as promessas estarem a cumprir-se valoriza a política, os políticos e a democracia. Cortou-se na lógica de fazer promessas na campanha eleitoral e, chegado ao governo, fazer precisamente o contrário. Parece-nos que, neste momento, os compromissos estão a ser concretizados.
Como é a sua relação com o atual Governo e com os parceiros sociais?
É uma relação diferente da anterior. Com o governo anterior não havia diálogo, não havia negociação, não havia rigorosamente nada. Agora há outra abertura da parte do Governo para dialogar e procurar encontrar soluções connosco. E nós procuramos não só criticar o que não achamos adequado como apresentar propostas alternativas para resolver problemas. Em relação aos parceiros sociais, verificamos que as confederações patronais estão a fazer tudo o que está ao seu alcance para condicionar o Governo. Este vai ser o grande desafio e terá de clarificar a sua posição: ou se deixa ficar prisioneiro das pressões e chantagens das confederações patronais ou se liberta definitivamente e passa a governar para ir ao encontro daqueles que lhe deram voto. Mais do que palavras, nós exigimos atos.
Cortou-se na lógica de fazer promessas na campanha eleitoral e, chegado ao governo, fazer precisamente o contrário"Mário Centeno disse há tempos que os salários em Lisboa são um terço dos praticados em Paris. Como lhe apraz reagir a estas palavras?
Cá está a contradição. Temos um primeiro-ministro a dizer que quer acabar com um modelo de baixos salários e trabalho precário e depois temos um ministro das Finanças a dizer aos investidores estrangeiros que em Portugal se trabalha muito e se ganha pouco. Assim não vamos ser competitivos. E nós vamos mais longe e criticamos também o IGCP, por nos pressupostos para atrair investidores ter dito que em Portugal havia um baixo nível de abrangência da contratação coletiva, se pagava mal e havia um baixo nível de proteção social. São mensagens que não valorizam o país nem os trabalhadores e que contrariam o sentido de mudança que foi apresentado.
Encarou da mesma forma as declarações do primeiro-ministro sobre a possibilidade de professores portugueses emigrarem para França?
Sobre isso creio que houve uma tentativa de aproveitamento por parte da Direita para arranjar uma manobra de diversão para se falar de tudo menos do que importa. Não nos pareceu que tivesse havido um posicionamento de António Costa idêntico àquele que Passos Coelho assumiu enquanto primeiro-ministro quando disse que os portugueses podiam emigrar. Quando mais pessoas saírem do país (especialmente qualificadas), mais nos colocamos numa posição periférica em relação à União Europeia.
Disse também que quem quer educação privada deve pagá-la. Depreende-se que concorda com a decisão do Governo de acabar com alguns contratos de associação.
O que sempre dissemos e mantemos é que os princípios constitucionais devem ser respeitados. No que toca ao ensino, compete ao Estado assegurar as condições necessárias para que todos tenham acesso no plano da igualdade. É lógico que não faz sentido nenhum que, tendo escolas onde foi investido dinheiro do erário público, estas não sejam rentabilizadas e seja desviado dinheiro dos nossos impostos para continuar a manter colégios. Se há uma oferta pública, temos de rentabilizar aquilo que existe.
A decisão de deixar de financiar metade dos colégios com contratos de associação dará azo a despedimentos no setor privado?
Esse é um problema com o qual a CGTP está preocupada. Independentemente de ser público ou privado, nós defendemos sempre os postos de trabalho. Através dos nossos sindicatos demos todo o apoio necessário a esses mesmos trabalhadores no caso de isso se vir a verificar. Mas creio que a discussão deve ser colocada noutro patamar. Se as administrações desses mesmos colégios foram tão criativas para fazer investimentos de ostentação e de luxo à custa do dinheiro do erário público para fazer da educação um negócio, então agora devem ter a mesma criatividade para, reduzindo os lucros, garantir a manutenção dos postos de trabalho.
Investir nos contratos de associação com o setor privado levava a que houvesse um menor investimento no setor público?
Nós tivemos uma situação caricata. Os mesmos PSD e CDS que agora se mostram tão angustiados e contrários à decisão que foi tomada foram os mesmos que, nos últimos quatro anos, encerraram escolas, maternidades, serviços de Finanças, hospitais e outros serviços públicos fundamentais. Tudo em nome da redução do défice e da dívida. Enquanto cortaram três mil milhões de euros na educação, andaram a financiar alguns colégios quando tinham escolas públicas ao lado. É uma postura hipócrita, cínica e contrária aos interesses do país.
*A segunda parte desta entrevista pode ser lida aqui.