"Nos livros os bonecos são sempre 'hetero' e brancos. Não somos assim"
Isabel Advirta e Marta Ramos, presidente e diretora executiva da ILGA, respetivamente, são as entrevistadas desta semana do Vozes ao Minuto.
© Reuters
País ILGA
A associação ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero) celebra, este ano, 20 anos de existência. Os serviços de apoio que a associação disponibiliza ou a importância de pessoas reconhecidas na sociedade assumirem as suas orientações sexuais são alguns dos temas abordados na segunda parte desta entrevista.
Têm recebido mais pedidos de ajuda?
Isabel: É difícil fazer esta contabilização. Por um lado, as pessoas estão mais capacitadas para reconhecer o que é discriminação e para denunciar e pedir ajuda. Por outro lado, os serviços que prestamos têm maior visibilidade e as pessoas vão sabendo cada vez mais onde se podem dirigir. Há, na verdade, uma série de fatores: a visibilidade da associação, a visibilidade das questões LGBT e o facto de várias pessoas conhecidas se revelarem, o que há alguns anos não acontecia.
Marta: As pessoas já não ficam caladas em situações de discriminação. A realidade ainda está longe de corresponder ao número de denúncias que recebemos, porque sabemos que necessariamente terá de ser muito pior. A questão é que cada vez mais começamos a receber denúncias de discriminação em áreas em que até há pouco tempo não recebíamos. Por exemplo, no desporto recebemos cada vez mais denúncias, em casos de prestação de serviços também, como foi aquele caso do hotel no norte. Ou seja, as pessoas também percebem que não é tolerável aceitar a recusa do acesso ao que quer que seja e sabem que é uma situação de discriminação
Que tipo de serviços de apoio a ILGA oferece?
Marta: Temos uma linha de apoio telefónico, temos o serviço de aconselhamento psicológico porque é necessário profissionais com competências específicas para tratar a discriminação contra pessoas LGBT e porque é preciso que as próprias pessoas LGBT sintam que vão a profissionais competentes e respeitadores.
Temos também um departamento jurídico e o serviço de integração social para vítimas de violência, para requerentes de asilo e para situações de emergência social que, regra geral, são jovens que são expulsos de casa quando revelam a sua orientação sexual ou identidade de género
E temos ainda o observatório da discriminação que todos os anos publica um relatório sobre a discriminação em Portugal.
O nosso trabalho acima de tudo é esse. Não só de sensibilização do público em geral, mas acima de tudo a capacitação das próprias pessoas LGBT para recorrerem e para denunciarem, para não viverem no silêncio e não serem silenciadas por outras pessoas
O que se pode fazer mais para incitar as vítimas a denunciarem e para consciencializar os agressores do crime que cometem?
Marta: O que se pode fazer? Visibilidade! Acima de tudo é a visibilidade.
Isabel: Há alguns anos fizemos uma campanha publicitária cujo mote era ‘Pelo Direito à Indiferença’ e continuamos a rever-nos nesta ideia. O Portugal ideal é aquele em que a orientação sexual não fará a diferença nem na forma como se vive a vida, nem no acesso a serviços.
O caso do Colégio Militar é outro exemplo de como as pessoas ficaram chocadas, pois é um estabelecimento de ensino do Estado que fomentou e que acolheu a discriminação.
O Portugal ideal é aquele em que a orientação sexual não fará a diferença nem na forma como se vive a vida, nem no acesso a serviçosEste tipo de situações sempre existiu, simplesmente agora é mais visível e é apontado. O que acontece é que a visibilidade tem este valor acrescido que é trazer para a discussão pública a realidade da discriminação que muitas vezes é invisível, pois tende a ser dissimulada.
Falavam há pouco da importância de personalidades de diversas áreas da sociedade assumirem as suas orientações sexuais…
Marta: O facto de estas pessoas, que são reconhecidas seja em que setor da sociedade for, se revelarem publicamente tem um impacto positivo em todas as outras pessoas que pensam ‘aqui está uma pessoa que conseguiu isto na área onde trabalha, então eu também consigo’. Daí a importância de as pessoas que têm algum tipo de reconhecimento público assumirem. E poderiam ter esse papel ativo, se o quisessem ter. A verdade é que há muito poucos modelos.
No que diz respeito à política, há algum político que tenha assumido esse papel?
Marta: Já houve. Na altura o Miguel Vale de Almeida [foi deputado do PS entre 2009 e 2011, tendo estado envolvido na aprovação da lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo e da lei de identidade de género] e agora o Alexandre Quintanilha [deputado PS desde 2015].
Isabel: Tanto um como o outro são independentes, fizeram as suas carreiras e foram convidados para serem deputados num determinado contexto.
Marta: A questão é que em 42 anos de democracia, em 21 governos… estamos a falar de duas pessoas. É mentira. Tem de haver mais. Uma em cada dez pessoas supostamente é lésbica, gay ou bissexual. Andamos na rua e é muito fácil, porque são 10% da população. É muito fácil estarem em todo o lado e estão em todo o lado. Claro que há muitas mais pessoas só que ainda não fizeram o seu processo público. Não é que tenham que o fazer, mas têm esse papel importante.
Isabel: Sou otimista e acredito que estejamos a caminhar para uma ‘saída do armário’ de alguém pouco provável para algumas pessoas. Porque este silêncio é esconder uma coisa que é super bonita e natural em nós, que é o amor. Quando se esconde o amor não se tem grandes hipóteses de felicidade. É assim que eu vejo o mundo.
A maioria das denúncias de discriminação que recebem são para com homossexuais ou pessoas transgénero?
Isabel: É muito difícil comparar a homossexualidade com a identidade de género. As pessoas ‘trans’ muitas das vezes são visivelmente ‘trans’, enquanto as pessoas lésbicas, gays e bissexuais não, podem ser ou não, mas as ‘trans’ em algumas fases levantam poucas dúvidas.
Este silêncio é esconder uma coisa que é super bonita e natural em nós, que é o amor. Quando se esconde o amor não se tem grandes hipóteses de felicidadePor outro lado, passado algum tempo e alguns processos algumas destas pessoas dissipam-se completamente e não se dá mesmo por elas e, portanto, deixam de ser vítimas de discriminação.
Marta: E são menos em termos de representatividade e há menos informação sobre a realidade destas pessoas. Falta uma perceção social, não só da existência das pessoas ‘trans’, como também dos seus direitos. E aqui os modelos também são importantes. Tudo bem que as pessoas ‘trans’ existem em proporção menor, mas a verdade é que há muitas poucas pessoas ‘trans’ visíveis e representadas em filmes, em novelas, etc.
E estes modelos bastam para mudar a perceção da sociedade?
Marta: Mais do que tudo a educação é a arma fundamental. Há necessidade de uma área de educação cívica. A igualdade e não descriminação devia ser tratada em mais do que uma disciplina. Começa logo pelos próprios manuais, pela maneira como são escritos e representados através de imagens, situações e textos.
Se um manual é escrito ignorando completamente palavras como gay, lésbica, bissexual ou transexual não é representativo da sociedade.
Isabel: Os manuais do primeiro ciclo têm representações familiares que são sistematicamente um homem, uma mulher e uma criança e isto não representa a diversidade familiar que existe no Portugal de hoje. Os materiais devem ser o reflexo da diversidade que constitui a sociedade, não só em termos de orientação sexual, mas em outras áreas. Os bonecos que os miúdos vêem nos livros são sempre casais heterossexuais brancos e nós não somos assim.
No que diz respeito às pessoas transgénero o que é que já foi feito e que ainda está por fazer?
Marta: A lei de identidade de género entrou em vigor em 2011 e é o reconhecimento legal para poderem mudar os seus documentos de identificação, que é um passo super importante. Entretanto, o Código Penal já prevê a identidade de género como fator de agravamento de penas, o Código do Trabalho também prevê a proibição de discriminação a estas pessoas. Isso são pequenas mudanças mas são muito importantes porque é o dia-a-dia das pessoas.
Isabel: Há varias questões, sendo que a mais visível e mais específica é a das operações de mudança de sexo. Neste momento não estão a acontecer de todo, mas paralelamente a lei que foi criada para facilitar a mudança legal foi feita com propósito de simplificar ao máximo o processo e o que tem acontecido é que estão a ser colocados alguns obstáculos, como ter sido criada uma lista de peritos cuja assinatura é necessária para que o processo seja agilizado. E isto não está previsto na lei.
O sistema encontrou formas de contornar a própria lei colocando obstáculos a uma série de questões que poderiam agilizar e facilitar a vida das pessoas ‘T’.
Marta: Falta uma lei que preveja a autodeterminação dessas pessoas, que não tenham de passar por um processo para que lhes seja reconhecida a identidade. São elas que sabem quem é que são, não é ninguém que sabe quem elas são. E claro, todas as questões relacionadas com as operações de mudança de sexo.
*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.
Comentários
Regras de conduta dos comentários