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"A Legionella não vai estar na ordem do dia, mas vai andar por aí"

Fernando de Almeida, presidente do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, é o entrevistado de hoje do 'Vozes ao Minuto'.

"A Legionella não vai estar na ordem do dia, mas vai andar por aí"
Notícias ao Minuto

08:30 - 06/03/18 por Filipa Matias Pereira

País Fernando de Almeida

Gripe, Legionella, Sarampo. Estes foram os pontos de partida para a entrevista do Notícias ao Minuto a Fernando de Almeida, presidente do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) - um organismo público integrado na administração indireta do Estado, que tem projetado a sua imagem junto de congéneres internacionais. 

Enquanto 'laboratório do Estado' que dá resposta a surtos, o INSA tem evidenciando o pioneirismo que flui no seu ADN, já que tem levado aos 'palcos' à escala global científicos projetos inovadores como a sequência do genoma total do vírus influenza [vírus da Gripe].

Já quando o tema 'em cima da mesa' é a Legionella, o Fernando de Almeida destaca algumas das medidas que estão a ser tomadas preventivamente para evitar novos surtos - uma doença que "não vai estar na ordem do dia, mas vai andar por aí", alerta.

Queremos claramente que alguém externo nos diga para onde é o caminho porque temos de nos modernizar. É urgenteO Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) será alvo de uma avaliação externa independente. Qual o objetivo?

O Instituto, até à última avaliação que data de 2006, esteve dependente de uma dupla tutela, nomeadamente, do Ministério da Saúde e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. A partir dessa altura, o Instituto deixou de estar tutelado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, embora se mantenha como laboratório de Estado e laboratório de investigação científica. E desde essa altura, há 12 anos, nunca mais foi avaliado sendo que, de acordo com a legislação, todos os Laboratórios do Estado devem estar sujeitos a avaliações periódicas.

Quando tomei posse, uma das minhas preocupações era perceber porque é que não se tinha tido oportunidade de fazer uma avaliação e, por isso mesmo, solicitei-a à tutela. Mas essa altura coincidia com o fim da legislatura e foi entendimento que não era oportuno efetuar essa avaliação. Depois, com a nova legislatura, voltámos ao tema e o entendimento do Ministério da Saúde foi para avançar; estavam criadas as condições para fazermos uma reforma global do INSA. Trata-se de uma estrutura centenária, que precisa de ser modernizada, sobretudo na parte da infraestruturas, organização e redefinição da sua missão, já que o Instituto deve estar direcionado para os desafios hodiernos na investigação e inovação.

Nesse sentido, resolvemos iniciar o nosso processo de reforma do INSA. Iniciámos o processo com uma reforma interna. O primeiro passo é auscultar o que os nossos colaboradores da casa têm a dizer, depois damos voz aos stakeholders. Queremos também ouvir congéneres e perceber como é que outros institutos da Europa e do mundo estão a organizar-se e o que acham que devíamos fazer.

Para além disso, temos a avaliação externa e independente, cujo responsável é o Ministério da Saúde. Serão escolhidos cerca de cinco peritos nacionais ou internacionais que irão proceder à avaliação do INSA e indicarão qual o caminho a seguir nesta reorganização. Queremos claramente que alguém externo nos diga para onde é o caminho porque temos de nos modernizar. É urgente fazermos essa modernização. Este é um processo que, clara e inequivocamente, queremos que seja internacional, independente e autónomo. Não gostamos, neste caso, de sermos juízes em causa própria.

Este ano vacinaram-se mais pessoas, o que ajudou a que o pico da Gripe não fosse tão expressivo

Segundo a Direção Geral da Saúde (DGS), a epidemia da Gripe está controlada. Ao que tudo indica a atividade gripal, este ano, foi menos intensa. Podemos fazer essa leitura?

A gripe é um fenómeno sazonal, que acontece todos os invernos e, normalmente, o seu início coincide com as últimas semanas de dezembro e as primeiras de janeiro. Por norma, começa na segunda ou terceira semana de dezembro, ou seja o pico coincide com a semana que antecede a passagem de ano. Este ano, o pico de gripe foi um pouco mais suave. Quando se trata da estirpe B, que tem uma progressão mais lenta, não é tão agressiva e não se traduz em números tão elevados de mortalidade. E este ano foi precisamente essa a estirpe dominante, mais especificamente o vírus do tipo B da linhagem ‘yamagata’, que é diferente do vírus ‘vitória’ que está na vacina. Mas, embora este não esteja contemplado na vacina, há uma imunização cruzada. Importa salientar, também, que este ano vacinaram-se mais pessoas, o que ajudou a que o pico da gripe não fosse tão expressivo.

Fenómenos de afluência anormal nas urgências hospitalares devem ter muito mais solidariedade do que críticasEste ano, à semelhança de outros, precisamente na semana que medeia o Natal e a Passagem de Ano, muitos utentes queixaram-se das longas horas de espera nas urgências do hospital.

Qualquer organização, neste caso os hospitais, têm de fazer uma gestão. E a meu ver houve muito aproveitamento, até político. Estes fenómenos devem ter muito mais solidariedade do que críticas. Qualquer organização deve estar preparada para um clima de normalidade no país e os hospitais estão dimensionados nesse sentido, para além de terem um estatuto que lhes permite garantir uma reposta e uma acessibilidade normalizada.

É evidente que as urgências são os locais mais sensíveis à maior pressão nas alturas de pico de gripe. E, apesar de os cuidados de saúde primários fazerem o seu papel, uma parte importante das pessoas procura resolver o seu problema recorrendo, diretamente, aos hospitais.

Então surgem os projetos de contingência. Todos os ministros com quem já colaborei mostraram-se, sempre, preocupados em fazer um esforço muito grande de remodelação das estruturas de saúde e este ano não foi exceção. Este ministro insistiu ainda mais nessa questão e todos os hospitais estavam preparados. Porém, independentemente de toda esta preparação, é sempre problemático quando há um afluxo anormal e quando adoecem todos ao mesmo tempo. Por mais que a estrutura esteja preparada, o espaço físico e as equipas, apesar de reforçadas, são as mesmas. Este ano havia mais camas, foram feitos acordos e acho que nesse aspeto as coisas correram bem. Mas há sempre um período em que as pessoas ocorrem em massa às urgências. E isso não acontece apenas em Portugal. Acontece também em Espanha, na Alemanha e na Inglaterra, por exemplo.

O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge desenvolveu uma plataforma inovadora que permitirá fortalecer a vigilância da Gripe. Em que consiste mais concretamente o INSaFLU?

Somos um laboratório que dá resposta a surtos e temos uma tecnologia que permite sequenciar o genoma humano total e através dela, por exemplo, já conseguimos sequenciar o genoma total da legionella. A comunidade científica internacional tem exortado os países e as estruturas de investigação a fazerem estudos de metodologia diagnóstica no sentido de analisar o vírus ‘influenza’ - vírus da gripe - porque potencia maior facilidade de diagnóstico e é mais fácil estudar a sua orientação epidemiológica. Há muitas vantagens que poderiam advir da determinação do genoma total do ‘influenza’.

Com efeito, temos um departamento de doenças infeciosas que tem um laboratório de bioinformática. E na unidade de tecnologia e inovação desse laboratório está o NGS - Next Generation Sequencing – que permite fazer a sequenciação de tudo isso. Ora, o departamento de genética e o da gripe juntaram-se e começaram a trabalhar numa tentativa de aplicação que lhes permitisse determinar e fazer a sequência total do vírus 'influenza'. E conseguiram. Fizemos então a apresentação ao público do ‘INSide the FLU’ (INSaFLU) e o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC) ficou muito contente. Aliás, a comunidade científica internacional está muito interessada em adquirir esta plataforma que foi construída com base informática. De facto, é uma ferramenta muito útil para fazer o diagnóstico e vigilância epidemiológica.

Na verdade não houve um surto de Sarampo. Houve dois que coincidiram temporalmente

E quanto ao Sarampo? Foram quatro meses de surto e uma morte.

Na verdade, não houve um surto. Houve dois que coincidiram temporalmente. Hoje em dia, a nível científico, conseguimos ir tão perto do genoma pela genotipagem que é possível ver que não era o mesmo vírus. Houve dois vírus do sarampo diferentes – um genótipo B3 e o outro D8, e conseguimos inclusive perceber que um era mais prevalente no Reino Unido e que coincidiu com a ocorrência no Algarve. O outro surto, o D8, que atingiu mais a região de Lisboa e Vale do Tejo, é mais prevalente na Europa central norte, nomeadamente na Roménia. Mas termos dois surtos não quer dizer que é pior do que um. É apenas um dado científico. E, contrariamente, ao que se divulgou, registaram-se 27 casos de Sarampo nessa altura.

A nossa função é dizer vacinem-se, vacinem-se, vacinem-se. Acho que ninguém tem o direito de, por uma teoria, pôr em perigo a vida dos outrosNo caso da jovem que morreu, segundo o que foi divulgado esta não tinha sido vacinada...

A nossa missão é dizer vacinem-se, vacinem-se, vacinem-se. Em termos de plano nacional de vacinação, Portugal está muito bem posicionado em relação à Europa. Temos elevadíssimas taxas de vacinação, mas não estamos imunes a teorias anti-vacinação que, sendo respeitáveis em termos de opinião, nos deixam muito preocupados. Acho que ninguém tem o direito de, por uma teoria, pôr em perigo a vida dos seus e dos outros. Não sou, de modo algum, apoiante das teorias proibicionistas, mas precisamos é de sensibilizar as pessoas e perceber que vacinar é a melhor maneira de nos mantermos saudáveis.

Vila Franca foi um episódio raríssimo porque se verificou a conjugação de imensos fenómenos, tal como aconteceu no São Francisco XavierHouve, recentemente, mais um surto de Legionella no Hospital CUF Descobertas. É provável que nos próximos tempos tenhamos ‘novidades’ da doença dos legionários?

A legionella é um fenmeno ambiental com impacto na saúde. É uma bactéria de conforto, de temperaturas quentes e águas aerossolizadas e estagnadas. Portanto, é provável que apareça em reservatórios artificiais como sistemas de água doméstica (quente e fria), humidificadores, torres de arrefecimento de sistemas de condicionamento de ar, jacuzzis, piscinas, instalações termais, águas sujas paradas e fontes decorativas (repuxos, por exemplo) - locais onde se produzam aerossóis com facilidade. Tudo o que seja produção de aerossóis é uma fonte potencial.

O fenómeno de Vila Franca foi um episódio raríssimo porque se verificou a conjugação de vários fenómenos, tal como aconteceu no São Francisco Xavier. Verificou-se uma confluência climática que fez com que aquelas partículas se dispersassem numa pequena dimensão daquele período de tempo. Mas, de facto, trata-se de uma questão que nos preocupa.

A maior parte das vezes a legionella não provoca doença grave. Ou seja, não provoca pneumonia, mas sim o que chamamos de febre de Pontiac - o período de incubação varia entre dois a 10 dias e, a nível geral, decorridos cerca de cinco a seis dias depois de se terem inalado as bactérias presentes nas gotículas de água podem surgir os primeiros sintomas, muito parecidos com o síndrome gripal, tais como o catarro respiratório superior. Quando se associa a pneumonia torna-se muito grave, e importa relembrar que as pessoas mais vulneráveis são, sobretudo, as idosas imunodeprimidas, com patologias associadas e problemas respiratórios graves. Por isso mesmo correm maior risco de vida.

O INSA lançou o Programa de Intervenção Operacional de Prevenção Ambiental da Legionella (PIOPAL). Qual o objetivo aqui subjacente?

Trata-se de um programa que arrancou em janeiro e ao abrigo do qual serão analisadas amostras de água dos hospitais para evitar surtos de legionella. E já começámos a receber águas dessas unidades de saúde. Trata-se de uma avaliação de vigilância de todas as unidades de prestação de cuidados de saúde.

O projeto abrange também os hospitais privados ou cinge-se aos públicos?

O objetivo é alargá-lo também aos privados. O projeto inicial não previa os hospitais privados, mas pretendemos incluí-los e vamos, por isso, perceber se há margem de recursos (técnicos e humanos) para também dar apoio as essas unidades de saúde.

O corpo clínico está muito mais desperto para este problema. A Legionella não vai estar na ordem do dia, mas vai andar por aíDe 2010 a 2017 foram confirmados 1.381 casos de legionella. Há um aumento de pessoas infetadas?

O que se passa é que, hoje em dia, o corpo clínico está muito mais desperto para este problema. Perante uma pneumonia atípica, é feito um diagnóstico de execução rápida, que passa pela pesquisa de um antigénio na urina, a antigenúria. E perante a confirmação de um caso de legionella, tanto os médicos como os laboratórios são obrigados a comunicar essa ocorrência ao Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE). A legionella não vai estar na ordem do dia, mas vai andar por aí.

Temos de estar muito bem preparados para eventuais surtos, como foi o caso do Ébola, em 2014. Contrariamente ao que toda a gente pensava, o vírus não ficou apenas em África

Desde que assumiu o seu mandato, tinha como objetivo fortalecer as relações com a CPLP. Tem conseguido promover projetos nesse sentido?

O Instituto tem de ter uma postura estratégica na Cooperação. E nesse sentido estamos ligados às redes mundiais, sobretudo à europeia. Por isso, os nossos laboratórios de referência são sistematicamente analisados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e por outros laboratórios para percebermos até que ponto estamos ou não na ‘gold standard’ em relação ao resto da Europa e temos passado em todos os testes.

Na área da nutrição e obesidade infantil, somos um Centro Colaborativo para a Nutrição e Obesidade Infantil da OMS, o que significa que a Organização Mundial de Saúde designou Portugal e o Instituto Ricardo Jorge para dar apoio nessa área. Com efeito, temos forte ligação à Europa, mas por outro lado temos os PALOP’s e a CPLP. Facilmente se percebe que Portugal é a principal porta de entrada de população de outras nacionalidades e nesse contacto muita coisa pode acontecer. Por isso, temos de estar muito bem preparados para eventuais surtos, como foi o caso do ébola, em 2014. Contrariamente ao que toda a gente pensava, o vírus não ficou apenas lá na África. E a comunidade científica só percebeu isso quando começou a constatar que, pelo cruzamento de pessoas, alguns casos foram importados para outros países.

No caso da cooperação com África, optámos então por direcioná-la para a capacitação e dependência institucional. Queremos que fiquem autónomos e com capacidade para fazerem os próprios exames.  E Portugal não pode abandonar este desígnio da diáspora, tantas vezes falado e muito pouco praticado. Temos muito para ensinar e para aprender com aquelas populações. E devo ainda registar que somos muito bem recebidos lá. Sempre. 

Em 2014, fomos chamados para a Guiné por causa do Ébola e ainda não saímos de lá. Isto porque depois foram-nos pedindo formações e o CDC de Atlanta (USA) percebeu o nosso papel e a nossa missão, convidando-nos para lá ficar depois desse projeto. De salientar que o laboratório que montámos na Guiné foi classificado por Peter Graaff, diretor para a OMS da Europa, como a ilha a montante e a jusante em África.  

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