"A canábis pode ser útil para tratar doenças, mas uso recreativo..."
João Goulão, presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), considera que ainda é cedo para pensar em despenalizar o uso recreativo de canábis.
© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto
País João Goulão
Debater o uso medicinal da canábis ao mesmo tempo que se quer falar sobre o seu uso recreativo é sinónimo de dificuldades para quem quer levar a cabo iniciativas de prevenção. Quanto à experiência de lazer com esta substância, João Goulão considera que é cedo e que é preciso esperar pelos resultados das "experiências" que estão a ser levadas a cabo em vários pontos do globo.
O presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) defende programas como a troca de seringas e a prescrição de metadona, tal como é favorável à instalação de salas de consumo assistido - salas de chuto na gíria.
O especialista fala, nesta entrevista, abertamente sobre as drogas, garantindo que só há toxicodependentes porque estas substâncias são boas.
E porque hoje se assinala o Dia Internacional Contra o Abuso e o Tráfico Ilícito de Droga, João Goulão vai estar no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a debater os temas que dizem respeito às dependências, sejam as lícitas ou as ilícitas. Também o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, vai participar do III Congresso do SICAD.
Quem é o toxicodependente português neste momento?
Hoje em dia temos muita gente que usa drogas ocasionalmente e há um muito menor número de consumidores problemáticos – entre 10 a 15% dos consumidores. Nesse sentido tivemos uma décalage importante.
Mas nem sempre foi assim.
Não. Houve uma explosão no consumo de substâncias ilícitas em Portugal no pós-25 de Abril. Foi uma coisa repentina. Enquanto em outras sociedades houve sempre uma linha para os utilizadores totais e uma linha muito inferior para os consumidores problemáticos, nós tivemos quase uma coincidência das duas linhas.
Os consumidores problemáticos são os consumidores mais antigos?
Alguns sim. Tivemos a eficácia de os manter vivos, mas colocam-nos agora problemas novos. Estas são pessoas que começámos a acompanhar nos anos 80/90 e estão aqui agora com 60/70 anos. Ou seja, a perspetiva de uma intervenção terapêutica, de uma intervenção integral - que era sempre a nossa preocupação - é muito reduzida.
A preocupação agora é apenas manter estas pessoas vivas?
É acompanhá-las enquanto envelhecem com dignidade, com acesso a cuidados de saúde e, em alguns casos, com oferta de intervenções que são mais ocupacionais do que propriamente de mudanças de fundo nos padrões de vida.
Nós não curamos ninguém, tal como não se cura um diabético, mas faz-se um acompanhamentoComo é que se consegue que alguém deixe de ser dependente da droga?
A ideia de que por uma qualquer arte mágica vamos resolver esta situação não existe, nós não curamos ninguém, tal como não se cura um diabético, mas faz-se um acompanhamento. E é importante fazer a destrinça entre adição e dependência. A adição é uma doença crónica recidivante. Isto é, uma pessoa é adicta, mas pode conseguir controlar a sua dependência. No entanto, se houver algum fator de desequilíbrio na sua vida voltará a consumir e a ser dependente da droga, mas na verdade nunca deixou de ser adicta.
O vosso trabalho incide muito então nesse acompanhamento?
O que os nossos serviços têm tido a capacidade de fazer é estar com estas pessoas em todas as circunstâncias. Apesar de algumas pessoas manterem os consumos, este acompanhamento contribui, pelo menos, para diminuir o risco envolvido no consumo, razão pela qual tivemos uma queda muito significativa, por exemplo, no número de overdoses e nas novas infeções pelo VIH entre utilizadores de droga.
E, para isso, contribuiu o programa de troca de seringas, certo?
Sim. Também é uma das componentes dos programas.
Há quem consiga ficar definitivamente sem consumir?
Há muitos milhares de pessoas. E atenção que a ocorrência de uma recaída é algo que não nos leva a dizer que em determinado caso houve um insucesso. Nada disso. O sucesso foi termos esta pessoa parada e funcionante durante um certo período de tempo.
E é possível dizer que uma pessoa nunca vai consumir?
Não, verdadeiramente não. Mas quanto mais precoce for o início dos consumos maior a probabilidade de a pessoa se tornar dependente.
Eu costumo dizer que as pessoas usam drogas porque elas são boas. Ninguém usa drogas para sofrerO que leva alguém a consumir droga?
A necessidade de potenciar o prazer, de aliviar o desprazer e de aumentar a performance. Eu costumo dizer que as pessoas usam drogas porque elas são boas. E isto é algo perigoso de ser dito por mim. Mas esta é a verdade: ninguém usa drogas para sofrer. As pessoas usam drogas porque elas proporcionam sensações agradáveis e porque potenciam sensações agradáveis. Por outro lado, hoje, e cada vez mais, estão a consumir-se substâncias que aumentam a peformance devido ao mundo profissional competitivo em que vivemos.
Mas hoje em dia também há muita informação sobre os malefícios do consumo de estupefacientes…
A informação é importante, mas não é tudo e está longe de o ser. Porque é que os médicos são uma das classes profissionais onde há mais consumo de tabaco? Não viria grande mal ao mundo se se potenciasse o prazer utilizando uma substância, o problema é que há a grande probabilidade de esta substância se transformar na única fonte de prazer que a pessoa consegue usufruir, tornando-se no centro da sua vida. O problema é as drogas tornarem-se na única fonte de prazer das pessoas.
E como é que se contraria isto?
Oferecendo outras fontes de prazer, fontes de prazer alternativas, como a satisfação pessoal, a realização dos sonhos, a capacidade de aceder a coisas que gostariam, como estudar, por exemplo.
Esta não é uma realidade fácil de se lidar, pois não?
Não, é uma realidade muito dura. Nós temos a felicidade de ter em Portugal uma abordagem que contribuiu para reduzir seriamente o estigma destas pessoas, para que a dependência seja encarada como uma condição de saúde com a mesma dignidade de outras condições de saúde. Mas é uma realidade dura com histórias de vida incríveis e circunstâncias muito complicadas.
É bem frequente que os nossos profissionais entrem em situações de grandes dificuldades emocionaisComo é que se consegue lidar diariamente com estas situações?
Às vezes não se consegue. É bem frequente que os nossos profissionais entrem em situações de grandes dificuldades emocionais, exatamente por esse confronto com situações muito complicadas. Felizmente temos tido também a capacidade de ter um trabalho interno de equipa, de suporte, de entreajuda, que tem permitido que os profissionais sejam apoiados pelos colegas.
Há pouco falou no programa de troca de seringas. Que balanço faz?
Um balanço muito positivo. Temos também outras medidas como o programa de substituição com metadona com baixo limiar de exigência. Uma pessoa ao tomar este medicamento, previamente prescrito, não vai sofrer tanto com a carência de heroína. Esta é também uma medida de redução de danos para que a pessoa tenha menos necessidade e menos compulsão de usar heroína.
Ainda há muitas pessoas que se injetam?
Há e na sequência da crise houve muitas recaídas e muitas pessoas que voltaram a consumir por via injetável. Aliás, é isso que preside à ideia de se colocar em cima da mesa a necessidade das salas de consumo assistido.
Como responde às críticas de que uma sala de consumo assistido é uma sala onde se desincentiva o abandono do vício?
Explicando que numa sala de consumo assistido é possível permitir que uma pessoa consuma em condições de dignidade, ao mesmo tempo que é encorajada a procurar tratamento para parar de consumir.
Atualmente, as pessoas infetam-se pelo VIH muito mais através de relações sexuais do que através do uso de drogas por via injetávelO mesmo se aplica à troca de seringas?
Sim. A troca de seringas usadas por outras esterilizadas permitiu-nos ver os números de infeções pelo VIH entre consumidores de drogas injetáveis descerem, sendo agora o menor dos contingentes das novas infeções que ocorrem em Portugal. Atualmente, as pessoas infetam-se muito mais através de relações sexuais do que através do uso de drogas por via injetável.
O consumo de canábis para fins medicinais foi agora aprovado. Qual é a sua posição?
É favorável e parece-me perfeitamente legítimo que se possa recorrer a canábis para tratar determinadas condições clínicas.
E quanto ao uso recreativo?
Essa discussão é outra e misturar as duas coisas tem dificultado o trabalho de prevenção.
Porquê?
Porque o facto de se misturar as duas discussões leva as pessoas a pensarem que, se é recomendado para uso medicinal então é porque não faz mal à saúde, e não é bem assim. A canábis pode ser útil para tratar determinadas doenças, mas isso não justifica que seja panaceia para tudo e possa ser usada livremente de forma recreativa.
Então não é a favor da despenalização do uso recreativo?
Neste momento não lhe sei dizer com segurança. Nós fomos um laboratório social quando descriminalizámos o uso de todas as substâncias e na altura dizia-se que os consumos em Portugal iam disparar. No entanto, o que se verificou foi uma redução dos consumos e das suas consequências.
Como é que isso se explica?
Explica-se com um conjunto de políticas integradas baseadas numa abordagem humanista dos utilizadores de drogas. Ao invés de serem enviados para as prisões, oferecemos-lhes uma série de respostas que reduzem os impactos desse problema na sociedade.
O que está em cima da mesa hoje é outro paradigma que é o paradigma regulador, ou seja, conferir à canábis e eventualmente a outras drogas o mesmo estatuto que tem por exemplo o álcool ou o tabaco, em que o Estado intervém em todas as fases, desde a produção até à venda ao consumidor.
Há experiências a decorrer neste momento – no Uruguai, em alguns estados dos EUA e agora no Canadá – e eu gostava de ter o resultado dessas experiências antes de fazer claramente uma opção para Portugal.
E o exemplo da Holanda, não é bom?
Não é um mercado regulado. Usar canábis na Holanda é crime. Pode comprar ou usar num estabelecimento – coffee shop –, mas ninguém sabe como é que a canábis lá chega porque tem origem no mercado ilícito.
Despenalizar não seria vantajoso para Portugal em termos financeiros? Afinal, consome-se…
Pode ser um benefício, não digo que não. Mas não tenho uma posição fechada quanto a isso, gostava de ver a evolução destas novas experiências: o Uruguai, alguns estados dos Estados Unidos e o Canadá.
Esta discussão está para breve?
Acho que sim, não tenho é certeza de que seja imediatamente admitida no Parlamento. Eu gostaria que houvesse uma discussão a fundo sobre esta questão e que a mesma fosse informada pelo resultado de experiências que estão a acontecer para termos alguma evidência.
Gostaria que houvesse já dados palpáveis, pois cada vez mais é importante que as decisões políticas sejam fundamentadas em evidência científica e não porque é moderno ou porque acompanha determinada clientela.
A política que temos perseguido nos últimos quase 20 anos tem dado bons resultados, não vejo que tenhamos de mudar radicalmente só porque é moderno, porque é moda.
*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.
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