Joker é uma das personagens mais ricas e complexas (na sua insanidade, que não é isenta de lógica) do universo da DC e dos comics, de uma forma geral. Vários foram as iterações nos quadradinhos, mas também nas séries e filmes de animação e ‘live action’ à personagem. A mais recente chega agora ao cinema pela visão de Todd Phillips e encarnada por Joaquin Phoenix. E não é um exagero dizer que é uma versão completamente diferente do que já se viu, até pelo facto de se distanciar daquilo que são habitualmente os filmes de super-heróis e, porque não, super-vilões.
Não é a típica ‘origin story’, não vai beber a sua inspiração a algumas das histórias que levantam o véu à origem do 'Clown Prince of Crime' da cidade de Gotham. Há traços da espiral decadente e depressiva na qual cai o homem que se transforma em Joker no comic ‘The Killing Joke’ de Alan Moore, mas apenas isso.
O filme não entra no universo cinematográfico da DC, nem pretende ter sequelas. Tal como fez na banda desenhada com o selo Black Label, na qual deu liberdade criativa aos escritores e ilustradores para presentearem os fãs com histórias e versões diferentes de personagens bem conhecidas, a DC aplica a mesma receita ao cinema, sendo este o primeiro filme em que isso acontece.
Com essa liberdade criativa, Todd Phillips lança-nos na Gotham dos anos 80, uma Gotham nova-iorquina que nos recorda de clássicos que tiveram como pano de fundo a Grande Maçã (tem sido recorrente trazer à baila ‘Taxi Driver’). A cidade continua a emanar frieza e um ambiente tenso e pesado como sucede noutros filmes de Batman, sempre marcada pelo crime que molda a sociedade de Gotham e, neste caso, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix).
A receita para o desastre está lá. Fleck sofre de um distúrbio mental e denota claras dificuldades em relacionar-se com os outros. A exceção é a sua mãe, Penny Fleck (Frances Conroy) ela própria envolta em paranóia. Numa sociedade com um fosso cada vez maior entre os pobres e os ricos, em que os valores e princípios se dissipam (há paralelismos com a realidade e com algumas das questões que assombram as sociedades atuais), Fleck é um proscrito há procura do seu espaço através da comédia.
Acredita que deve trazer felicidade e riso ao mundo, mas esbarra na sua própria incapacidade de ter piada e conseguir fazer os outros rir. Sucumbido à sua insanidade e à violência que o rodeia, à medida que a narrativa vai progredindo a passagem de Arthur Fleck a Joker vai-se concretizando.
Temos de regressar à referência ao clássico de Martin Scorsese, 'Taxi Driver', para traçar um paralelo entre a jornada de Travis Bickle e a de Arthur Fleck. O impacto das circunstâncias serve de catalisador para um caos que já existia, dormente. O Joker de Joaquin Phoenix maquilha-se para esconder a sua pessoa num símbolo, um símbolo que, paralelamente, o despe até ao seu âmago - o espelho (inverso) daquilo que acontece com Batman, o seu arqui-inimigo.
Embora não apareça Batman, está lá um pequeno Bruce Wayne e o seu pai (e modelo em tantos aspectos), Thomas Wayne, apresentado sob um ângulo diferente da já clássica versão do salvador de Gotham.
Também há Murray Franklin, a personagem interpretada por Robert De Niro. Um popular apresentador de 'talkshow' em Gotham que vai desempenhar um papel importante no caminho seguido por Fleck.
Joker, um vilão glorificado?
A violência é um dos temas fulcrais no filme e volta a levantar a questão dos limites da arte. A estreia do filme está a ser preparada com precauções de segurança por parte das forças de autoridades nos Estados Unidos, que não esquecem o tiroteio numa sala de cinema de Aurora em 2012 durante a exibição de 'The Dark Knight Rises'.
O tiroteio em massa que roubou a vida a 12 pessoas tem sido evocado e já levou a Warner Bros. a dizer que 'Joker' não pretende retratar o arqui-inimigo de Batman como um herói. Não havendo o Dark Knight neste filme, e com a ação a desenrolar-se da perspetiva de Arthur Fleck pode ser fácil olhar para a personagem apenas como uma vítima da sociedade e esquecer, ainda que momentaneamente, que se vai tornar no vilão.
O que parece certo - salvo algum desvio inesperado - é que muito se vai falar do filme daqui em diante, que deverá ser um dos destaques da temporada de prémios. 'Joker' parece estar numa rota convergente com os Óscares e a interpretação de Joaquin Phoenix tem os olhos postos (e possivelmente até já uma mão) na estatueta dourada. O melhor elogio que se pode fazer ao ator é que, no mínimo, esteve à altura daquilo que Heath Ledger e Jack Nicholson fizeram nas suas versões do 'Clown Prince of Crime'.
'Joker' estreia nas salas de cinema portuguesas esta quinta-feira.