Líder norte-coreano retratado em livro de histórias cómicas e trágicas

No livro "O Grande Sucessor: o destino divinamente perfeito do brilhante camarada Kim Jong-un", a jornalista norte-americana Anna Fifield faz um retrato cómico e trágico da figura do Presidente da Coreia do Norte que prolonga uma linhagem de ditadores.

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Lusa
23/11/2019 17:45 ‧ 23/11/2019 por Lusa

Cultura

Kim Jong-un

 

A autora, chefe da redação de Pequim do jornal Washington Post, mostra como os antecessores de Kim Jong-un -- o seu avô, Kim Il-sung, e o seu pai, Kim Jong-il -- conseguiram autonomizar o país dos influentes impérios soviético e chinês, mas como foi o atual líder norte-coreano o mais eficaz a desafiar o ocidente, ao mesmo tempo que confunde o Presidente norte-americano Donald Trump, com quem mantém uma relação ambígua de amor e ódio, construída à volta de mitos e ameaças.

Kim Jong-un está tão preocupado com as hipóteses de Trump ser reeleito, em 2020, que um dos seus conselheiros foi consultar uma cartomante tradicional coreana para lhe perguntar se ele vencerá os candidatos democratas (a resposta foi afirmativa).

Ao longo de mais de 300 páginas do livro que este fim de semana chegou às livrarias portuguesas, traduzido e editado pela Casa Das Letras, a jornalista "escreveu um retrato vivo, convincente e, sobretudo, esclarecedor sobre o reinado de uma família de vilões no país mais isolado do mundo", nas palavras de David Patraeus, diretor da CIA quando King Jong-un chegou ao poder.

Em 2017, o Governo da República Popular Democrática da Coreia do Norte gabava-se de que a imprensa internacional tinha divulgado 67,4 milhões de histórias sobre Kim Jong-un, em inglês, num espaço de 10 dias, à impressiva média de 230 mil notícias por hora.

O Presidente da Coreia do Norte muito cedo percebeu a importância de construir uma narrativa mitológica à sua volta, fosse propagando a versão de que já conduzia automóveis aos três anos de idade ou divulgado estórias de inclemência perante os seus adversários.

Em 2018, sete anos depois de ter chegado ao poder, Kim Jong-un "tinha feito tudo o que precisava de fazer para consolidar o seu domínio", diz a autora, referindo-se à aquisição do poder dissuasor nuclear credível, ter-se livrado de rivais (reais ou imaginários) e rodear-se de um grupo de pessoas com a influência suficiente para o manter no poder.

O livro de Anna Fifield faz um retrato violento do modo como o ditador da Coreia do Norte consolidou a sua liderança.

Quando um seu ministro da Defesa lhe pareceu estar a fazer sombra, Kim Jong-un acusou-o de adormecer durante os seus discursos para o mandar executar publicamente, a tiro, por uma arma de combate antiaérea.

O ministro não se limitou a desaparecer, ele deixou de existir: a sua imagem foi apagada de fotografias oficiais e o seu nome foi eliminado de documentos.

Em junho de 2018, o líder norte-coreano reuniria pela primeira de três vezes com o Presidente dos EUA, Donald Trump, sob uma áurea de ditador contestado a ocidente, mas adulado no seu país, que teimava em desenvolver um programa nuclear contestado por inimigos e até aliados (como a Rússia e a China).

Anna Fifield faz um retrato solene do momento em que os dois Presidentes subiram a uma plataforma num hotel em Singapura, diante das bandeiras dos dois países, antes de apertarem as mãos numa coreografia que parece ter demorado minutos.

"Muitas pessoas no mundo vão pensar que é um filme de ficção científica", disse o líder norte-coreano a Trump, através do seu intérprete, no dia em que Kim Jong-un conseguira o que o seu avô e o seu pai haviam tentando sem sucesso.

"As cimeiras acontecem no final de um processo, não no início", escreve Fifield, citando diplomatas ocidentais que se arrepiavam perante o processo de aproximação entre os EUA e a Coreia do Norte, feito de avanços e recuos, entre elogios e ameaças.

Para explicar a ascensão de Kim Jong-un, o livro "O Grande Sucessor" mostra como, na verdade, o atual Presidente norte-coreano alicerçou o seu poder numa delicada mistura de elogio e rejeição da herança familiar.

"Kim Jong-un já tinha mostrado que não era o pai. Era muito mais temerário e audacioso", escreve Anna Fifield, que diz nunca ter tido dúvidas de que o líder norte-coreano nunca renunciaria às suas armas nucleares, por muitas promessas que tenha feito ao Presidente dos EUA.

"Apesar de todas as suas diferenças, Kim Jong-un e Donald Trump têm muito em comum", refere a autora, salientando o facto de ambos terem nascido no seio de um império familiar e ambos gostarem de romancear a adulação a que são sujeitos pelos cidadãos.

Em julho de 2019, Trump e Jong-un ofereceram-se mutuamente aquilo que mais apreciam: uma oportunidade fotográfica, atravessando lado a lado a linha que separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul, num conflito patente que dura há décadas e ficou em suspenso desde 1953, quando decidiram um tratado de paz que nunca chegou a ser assinado.

O livro de Anna Fifield mostra a "grande encenação", que o Grande Sucessor gosta de prolongar indefinidamente, seja com os convites a jogadores da liga de basquetebol norte-americana (sendo Dennis Rodman o seu favorito), a alterar oficialmente o seu ano de nascimento de 1984 para 1982 (para fazer coincidir com os 70 anos do nascimento do seu avô) ou a esconder a miséria e fome a que o seu povo está sujeito, em grande parte por causa das pesadas sanções económicas dos EUA por retaliação pelo programa nuclear.

"Ora! Posso sorrir e assassinar enquanto sorrio", foi a citação de Henrique VI, de William Shakespeare, que Anna Fifield escolheu para iniciar a obra onde fala das operações de charme do líder norte-coreano, capaz de mandar matar o seu irmão mais velho, num aeroporto de Kuala Lumpur, ou pedir aos seus generais para nadarem mais de cinco quilómetros em mar alto, para provar a supremacia norte-coreana.

 

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