A tentativa de tirar ideias das pessoas a partir de uma guilhotina, a impossibilidade de um cego falar com um surdo mudo, a descrição correta da dor de um beliscão ou um homem que passeia com um retrovisor na rua porque "a única forma de olhar para trás é olhar em frente" são algumas das situações que vão sendo lançadas por duas personagens que dialogam e, nos seus diálogos, vão lançando questões absurdas e pontos de vista excêntricos, sempre à procura de entender o mundo, a sociedade e o peso das palavras.
"Cidade, Diálogos", que vai estar em cena até 30 de maio no Teatro da Cerca de São Bernardo, tem como base textos de Gonçalo M. Tavares, selecionados a partir do livro "O Torcicologologista, Excelência".
Ao contrário do livro, que tem uma primeira parte dedicada a diálogos e uma segunda intitulada "A Cidade", na peça da Escola da Noite os diferentes diálogos que vão surgindo são entrecortados pelo seu contexto - a cidade -, onde quatro figuras 'voyeuristas' fazem uma espécie de relato objetivo e mínimo da vida íntima dos habitantes, identificados por números, onde se encontram pequenos momentos relacionados com a morte, a solidão, os afetos ou o amor.
"Quando li o livro apeteceu-me de imediato fazer 'A Cidade', que embora não seja uma coisa imediatamente teatral tem teatralidade. Depois, apeteceu-nos os diálogos, que são uma matéria que é relativamente perigosa porque parece teatro e parece que só falta fazer porque é diálogo, mas nem todo o diálogo é teatro e nem todo o teatro é diálogo", contou à agência Lusa o encenador da peça, António Augusto Barros.
Dos mais de 40 diálogos, a companhia escolheu 17.
Segundo o encenador, seria possível a companhia centrar-se num único tema a partir dos diálogos presentes no livro de Gonçalo M. Tavares, mas optou por várias questões, porque a cidade também "é muito essa mundividência rica e diversa".
Para a escolha deste livro pesa também o facto de a companhia querer falar "do diálogo e do diálogo na cidade", refere.
"Estes dois siameses peripatéticos têm visões interessantes sobre a cidade, que no fundo são as visões da arte - visões oblíquas, excêntricas. E isso interessou-nos numa cidade como esta, que embora seja um pouco inesperado, o diálogo é escasso e por isso, achámos interessante abordar esta ideia do diálogo", frisa.
Para se construir diálogo, nota António Augusto Barros, é preciso "o outro".
"Enquanto não tivermos interlocutor, não avançamos. O outro é-nos necessário, não é um empecilho", constata, salientando que na cidade há "os cidadãos, que são os dialogantes, mas há também o poder e o poder é tendencialmente monologante e gosta pouco da interlocução e de outros olhares".
O encenador salienta que a decisão desta peça "não é coincidência" e a abordagem do diálogo numa cidade como Coimbra não é uma escolha "inocente".
"Isso é político", afirma.
A peça, que conta com um prólogo em que a companhia lança um grito, procura assinalar essa ausência de diálogo.
"O diálogo é escasso, mas a arte não resolve isso. Pode sinalizar qualquer coisa que aparentemente não está bem. Às vezes, é só um grito, mas é isso que cabe à arte. A arte pode abrir uma porta qualquer para destapar algo meio invisível, que numa cidade às vezes há contextos em que aparecem unanimidades e a unanimidade, como dizia o [escritor] Nelson Rodrigues, é burra", diz Augusto Barros.
O espetáculo é interpretado pelos atores Ana Teresa Santos, Igor Lebreaud, Miguel Magalhães e Paula Garcia.
"Cidade, Diálogos" tem sessões de quarta-feira a sábado, às 19:00, e aos domingos, às 16:00.
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