Nick Cave não dá concertos. Dá sermões, autênticas lições de questionamento de Deus que levam os mais empedernidos dos ateus às mais profundas lágrimas de mágoa, de amor e de fé. No último dia do MEO Kalorama, o australiano recordou por que é considerado um dos melhores 'performers' ao vivo do mundo e fechou o festival com o melhor concerto dos três dias.
Às 21h em ponto, lá estava Nick Cave, de microfone em riste, qual batuta direcionada às mãos que se estendiam tenebrosamente na sua direção, a dar um simples aviso: 'Get Ready For Love'.
Os acordes explosivos da música com o mesmo nome irromperam pelo Parque da Bela Vista, e seguiu-se mais uma noite em que os desconhecidos ficaram embasbacados com o monstro de palco que é o veterano músico. Para os que já conheciam Nick Cave e os seus Bad Seeds, o alinhamento foi praticamente igual ao concerto dado no NOS Primavera Sound, em junho, mas espetáculos como estes nunca fartam.
Como no Porto, o concerto foi uma viagem entre as músicas mais antigas e reconhecidas de Cave, como as poderosas 'Jubilee Street' e 'From Her to Eternity', às baladas mais desesperantes e recentes de 'I Need You' e 'Waiting For You' - duas músicas sobrecarregadas de luto, retiradas dos dois últimos álbuns altamente influenciados pela morte do seu filho mais novo -, aos singles mais cantáveis como 'The Ship Song' e, claro, 'Red Right Hand'. Pelo meio, houve ainda espaço para dedicar uma música a uma aniversariante chamada Paula.
"É o teu aniversário? F***… Não sei o que dizer… Parabéns! Esta chama-se ‘O’Children’ e é para a Paula, é o aniversário dela", disse o australiano, criando certamente uma memória para a vida daquela jovem.
Depois de mais de duas horas e de um concerto bem esticado (no fim de contas, o último concerto de uma tour de Nick Cave merece honras especiais), eram visíveis algumas lágrimas, sorrisos e todo um mar de emoções no público. Em vez de terminar com 'Ghosteen Speaks', Nick Cave pediu mais uma vez a colaboração do público para fechar com 'The Weeping Song'. E, no 'encore', o músico dedicou ainda a belíssima balada 'Into My Arms' a Beatriz Lebre, uma jovem de Elvas assassinada e atirada para o Rio Tejo em 2020, cuja mãe escreveu a Nick Cave explicando-lhe o quanto esta gostava do tema.
Acabou assim mais uma passagem por Portugal de um dos mais míticos atos musicais dos últimos 20 anos e que, não sendo o último concerto do MEO Kalorama, deixou muitos no público de coração cheio e a digerir durante longos momentos o que puderam assistir. Não há ninguém no mundo que nos ensine tão bem o quão doloroso e agradável pode ser amar, e Nick Cave é um 'boatman' dos sentimentos mais profundos que possamos ter.
A segunda vida dos Ornatos não para de surpreender
Quando o regresso dos Ornatos Violeta foi anunciado em 2019, poucos esperavam que, três anos depois, a banda de rock português mais influente dos anos 1990 continuasse pelos festivais. A pandemia atrasou alguns planos, mas não amainou a nostalgia que a banda liderada por Manel Cruz continua a despertar.
Manel Cruz, dos Ornatos Violeta© Hélio Carvalho/Notícias ao Minuto
Foi um final de tarde banhado pelos grandes clássicos da banda, começando logo por 'Coisas' e 'Para Nunca Mais Mentir', do histórico álbum 'O Monstro Precisa De Amigos', de 1999.
O sotaque portuense de Manel Cruz soltou-se em todo o seu esplendor quando, depois de se enganar na letra de 'Dia Mau', o músico e compositor interrompeu a música, e desculpou-se com um sincero "F*di tudo". Mas foi apenas um erro de percurso. A música foi rapidamente retomada e cantada com ainda mais vigor por uma plateia que começava a encher lentamente o recinto do palco principal.
Como seria de esperar, 'Ouvi Dizer' e 'Chaga', duas das músicas mais conhecidas do rock português, foram as mais aclamadas, levando público e banda à loucura, aos saltos e aos gritos. Nem a parte declamada de 'Ouvi Dizer' (em que Manel Cruz recorda que "a cidade está deserta") foi ouvida com total silêncio; foi antes acompanhada pelos milhares de fiéis, como um poema que alguém recita à pessoa que mais ama, ali mesmo ao lado.
Uma Colina de educação sexual e graves sons (e sons graves)
Sozinho em palco, Chet Faker cativou a multidão sem grandes distrações ao seu redor, fazendo-se acompanhar pela guitarra e uma mesa de mistura que tornaram a sua atuação no Palco Colina memorável para os que estavam ansiosos por ver o cantor e compositor australiano.
Chet Faker© Hélio Carvalho/Notícias ao Minuto
Com um visual simples, roupas largas e um chapéu de pescador, Nick Murphy, sob o seu pseudónimo de Chet Faker, deixou todos confortáveis enquanto mostrou a sua versatilidade musical num espetáculo acompanhado de fumo e luzes. O público vibrou especialmente com os 'singles' mais conhecidos, entre eles 'Talk is Cheap' e 'Gold', acompanhados pela multidão que se envolveu com o artista.
O palco, no entanto, acabou por se revelar pequeno para o músico. Ao longo do festival, foram vários os festivaleiros que criticaram o som do Palco Colina, demasiado grave e centrado. Noutros concertos, como o muito aguardado de Moderat, logo no primeiro dia, o som era quase inaudível para quem estivesse mais de lado. Ainda assim, a música 'dançável' e animada de Chet Faker fez valer a pena o esforço de procurar um lugar mais central.
Mas antes de Chet Faker, esteve em palco Peaches. Há mais de 20 anos que a canadiana Merrill Nisker dá aulas sobre cultura LGBTQ+, discriminação de género e educação sexual. Logo à partida, a artista deixou claro o intuito da sua 'performance': pouca roupa, despida descaradamente, enaltecendo o despudor e a banalização de imagens sexuais explícitas.
Peaches reafirmou no início do concerto que estava a comemorar os 20 anos do seu primeiro grande disco, 'The Teaches of Peaches', evocando-o com temas como 'AA XXX', 'Hot Rod' e 'Fuck The Pain Away', o seu grande tema guardado para o final do concerto.
Peaches© Hélio Carvalho/Notícias ao Minuto
O concerto terminou com pouca roupa em palco. As bailarinas acabaram praticamente nuas e Peaches, que já tinha entrada com um ornamento enorme em forma de vagina, passou a maior parte do tempo em 'topless' e com os mamilos tapados. Aos 55 anos, Peaches mostrou o quão provocatória e pertinente consegue ser, oferecendo assim uma das atuações mais memoráveis do Kalorama.
Acabar com 'clubbing' sem sair da relva
Os Disclosure encerraram o Palco MEO da maneira mais participativa possível, envolvendo o público num espetáculo de luzes e batidas típicas de uma discoteca.
Todo o recinto do MEO Kalorama transformou-se numa pista de dança ao som das mais conhecidas músicas do grupo, como 'Latch' e 'When a Fire Starts to Burn'. Os artistas pediam e os fãs faziam: momentos antes de terminar esta última atuação do festival, os Disclosure criaram uma imagem impactante, com milhares de pessoas agachadas à espera da ordem para saltar. E assim foi. Uma multidão a voar num concerto em que o difícil era, pelo menos, não marcar o ritmo das canções com o pé.
Segundo os dados da organização do festival, apresentados numa conferência de imprensa no início da tarde, o MEO Kalorama acolheu mais de 112 mil pessoas ao longo de três dias, com o dia de Arctic Monkeys a encher com mais de 40 mil espetadores. A organização acrescentou que mais de 30% do público foi estrangeiro, vindo de 50 países diferentes para Lisboa.
A próxima edição já está marcada, para os dias 31 de agosto e 1 e 2 de setembro. O recinto não está fechado, desconhecendo-se se se mantêm no Parque da Bela Vista, mas a organização colocou logo à venda passes gerais a 95 euros na banda de merchandising no interior do recinto.
Leia Também: MEO Kalorama. Se Alex Turner traz a enchente, Róisín Murphy traz a festa