Patricia Lockwood leva leitor num mergulho à mente coletiva da Internet

A escritora norte-americana Patricia Lockwood estreou-se em Portugal com 'Sobre Isto Ninguém Fala', nas livrarias desde a semana passada, o primeiro romance da autora que já foi classificada como a "poeta laureada" do Twitter.

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© David Levenson/Getty Images

Lusa
09/10/2022 11:34 ‧ 09/10/2022 por Lusa

Cultura

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'Sobre Isto Ninguém Fala' ('No One is Talking About This', no original em inglês), editado em Portugal pela Bertrand, é um livro em registo de diário, embora na terceira pessoa, com duas partes: uma primeira em que a protagonista é apresentada como uma mulher que ficou famosa por uma publicação na Internet (aqui denominada "o portal") sobre se "pode um cão ser gémeos" e uma segunda sobre a perda da sobrinha, aos seis meses e um dia de vida, vítima de uma condição médica rara, algo que de facto aconteceu na vida real de Lockwood.

A presença da linguagem digital é a constante do livro, o que faz com que se torne numa obra muito localizada no seu tempo, algo "que foi construído no projeto de raiz", como disse Patricia Lockwood, em entrevista à Lusa.

"Queres que fique datado. Queres que seja atirado para o monte de lixo e depois queres que as pessoas voltem, passados 20 ou 25 anos, e digam 'era assim naquela altura'", afirmou a escritora, por telefone, a partir dos Estados Unidos.

Lockwood considera 'Sobre Isto Ninguém Fala' o seu livro mais acessível a leitores de outras faixas etárias e a utilizadores em diferentes escalas da Internet: "Tens pessoas a lê-lo que mal usam a Internet, como a minha madrasta", explicou a escritora, que se refere ao seu editor norte-americano como a "pessoa menos 'online' que conhece".

"Às vezes tens a sensação, enquanto escritora: 'Como é que [tu, leitor] entendeste isto? Isto é o meu diário mais íntimo, como é que o leste?'", disse à Lusa, entre risos.

Lockwood é apenas utilizadora do Twitter, rede que está a tentar bloquear de vez do telefone (sem sucesso, por enquanto) e cuja linguagem admite dominar, no equilíbrio que faz entre humor e seriedade.

A escritora disse à Lusa que se sente, 'online', como na vida real, sem apreciar movimentos de grupo e à margem do que o coletivo está a fazer: "Toda a gente estava sempre a falar do mesmo escândalo, do mesmo artigo, e eu não queria ser parte disso", afirmou, referindo-se à maneira como, nas redes sociais, se gera "uma forma de como [se fala] das coisas".

No livro, há a referência a um "ditador" que é um paralelo com o anterior Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (cujo dia da eleição -- 8 de novembro de 2016 -- é assinalado na obra como o dia em que "o sexo acabou na América"), e menções a vários acontecimentos verídicos que foram seguidos em tempo real no Twitter, com a sua própria linguagem.

"Em contraste com a sua geração, que passou grande parte do seu tempo 'online' a aprender código para que pudesse acrescentar animações básicas de borboletas aos fundos dos seus 'weblogs', a geração imediatamente a seguir passou a maior parte do seu tempo 'online' a fazer piadas incrivelmente preconceituosas para se rir dos idiotas que eram estúpidos o suficiente para pensar que eles queriam mesmo dizer aquilo. Só que, pouco depois, queriam mesmo dizer aquilo e de alguma forma, no fim de tudo, eram nazis. Foi assim que aconteceu sempre?", escreveu Lockwood no livro.

Lockwood tornou-se conhecida, inicialmente, por um poema "viral", intitulado 'Rape Joke' ('Piada da Violação', em tradução livre do inglês) e publicado em 2013 na The Awl, no qual relatou uma experiência de violência sexual. A sua vida cruza-se com a obra desde então.

Questionada pela Lusa sobre o prémio Nobel atribuído à francesa Annie Ernaux, que também traz a sua vida íntima para a escrita, Lockwood mostrou-se "algo deliciada", reconhecendo ser uma leitora recente da autora de "O Acontecimento".

"Adoro a seriedade do projeto [de Ernaux]. Algo que sempre tentei fazer foi abordar a minha vida com ligeireza, ao mesmo tempo que o faço com seriedade. [Entregar o Nobel] a alguém que desenvolveu um projeto do lado sério durante tantos anos, isso delicia-me", afirmou a escritora de 40 anos.

Embora não atribua grande peso ao Prémio Nobel da Literatura, Patricia Lockwood, assumida fã da escrita de figuras como o norueguês Karl Ove Knausgård, perguntou-se se a entrega do Nobel a alguém como Annie Ernaux "coloca um ponto final na autoficção".

'Sobre Isto Ninguém Fala' seguiu-se a um livro de memórias -- 'Priestdaddy' -- e duas coleções de poemas, e foi finalista do prémio Booker em 2021, que viu o júri classificá-lo como "uma carta de amor sincera e deliciosamente profana ao 'scroll' infinito, para além de uma meditação sobre o amor, a linguagem e a ligação humana". O livro esteve entre as listas de melhores do ano de múltiplas publicações.

A escritora Sally Rooney escreveu o seguinte, numa troca de 'emails' entre ambas, publicada pelo The Guardian em junho: "O teu trabalho é tão imprevísivel e extraordinário. Eu consigo ser, por vezes, um pouco engraçada, mas tu és sempre hilariante, a um nível que se torna confrontacional e desafiante filosoficamente. Eu consigo escrever cenas de sexo, mais ou menos, mas tu consegues tuitar em direto, com erotismo, o Bambi para uma audiência de milhões".

Leia Também: Nobel. Ernaux trouxe a sua vida para a literatura como afirmação feminina

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