Estas manifestações culturais eram, antes do 25 de Abril de 1974, motivo de perseguição, levando à marginalização de quem as praticava, como disse à Lusa o antropólogo Rui Cidra, especialista em migrações, etnicidade e transnacionalismo.
Na sua investigação sobre a música e a dança ao longo da trajetória colonial e pós-colonial, entre Portugal e os países africanos de expressão portuguesa, Rui Cidra contactou com testemunhas dessa perseguição.
"Não só me cruzei com fontes escritas, como também falei com algumas pessoas que foram os atores destes processos e sofreram estas perseguições na pele, nomeadamente tocadores e mulheres do batuco", em Cabo Verde.
E contou: "Em Cabo Verde, pelo menos desde meados do século XIX, e ainda antes do Estado Novo [1933-1974], as práticas de música e danças, as práticas expressivas, sobretudo da população camponesa da ilha de Santiago, são alvo de coerção política e de certas medidas políticas concretas".
Em relação ao batuco, um género formado por mulheres, "a legislação que existe desde o século XIX proíbe a performance do batuque em centros urbanos, porque o batuque é considerado imoral, não civilizado, perturbador da ordem e da tranquilidade".
"Com o Estado Novo, nomeadamente a partir de 1940, quer as autoridades civis, quer as autoridades religiosas exercem todo um conjunto de prescrições e de coerções relativamente à performance da cultura destas populações".
É determinado que "só se pode interpretar música e ter música em espaços públicos ou em casa tendo obtido licenças e, nomeadamente no que toca à gaita, ferro e ao funaná - principal estilo rítmico que estes tocadores de gaita e de ferro interpretam - todos os tocadores que sejam surpreendidos pelo corpo policial ou por estas pessoas ligadas à congregação a tocarem sem licença são detidos, são levados para interrogatório e são obrigados a pagar multas", adiantou.
Em relação à punição, o investigador exemplifica com a própria detenção, mas também a interrogação das pessoas, o estabelecimento de multas e várias coerções no quotidiano, que "envolviam também a própria marginalização e a própria violentação das pessoas e das famílias, nomeadamente dos músicos".
Perante esta perseguição, os músicos reagiram através de diversas práticas de resistência e sobretudo de práticas de simulação.
"As pessoas continuaram a tocar, mas de um modo camuflado, encontrando diversas estratégias e expedientes para não serem notados pelas autoridades, embora muitos tocadores que desafiaram estas prescrições tenham sofrido as consequências por causa disso", adiantou.
Com os movimentos anticoloniais em marcha, as principais músicas tradicionais das ex-colónias portuguesas em África são usadas como bandeira, embora no caso da morna cabo-verdiana, esta tenha sido "alvo de duas capturas, dois tipos de apropriação de dois campos políticos opostos".
"Por um lado, é apropriada pela política cultural que pretende demonstrar como é uma demonstração de convivência entre os portugueses e os povos que colonizou; por outro, a morna também é um género mobilizado pelos grupos anticoloniais e nacionalistas no sentido de documentar a necessidade de soberania dos povos da Guiné e de Cabo Verde".
Com o 25 de Abril, a música africana assiste a "uma explosão" e Lisboa transforma-se no "principal centro internacional de produção da música das nações da África lusófona".
Isso deve-se, sobretudo, "às migrações pós coloniais que aconteceram, e continuam a acontecer, e que nesse momento conheceram um grande incremento".
"Há espaços de sociabilidade que envolvem restaurantes, mas também salas de dança, discotecas, etc. Depois, também existe toda uma atividade ligada à edição discográfica", pois nesses países, ou não existiam, ou deixaram de existir infraestruturas para gravação e impressão de discos".
"Os discos eram gravados aqui para depois viajarem através dos vários centros de diáspora destas comunidades e também para viajarem para os territórios de origem", disse.
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