Alice Maud Lawrence Oram, filha dos proprietários do Hotel Lawrence's, em Sintra, é a autora da primeira grande reportagem, publicada no estrangeiro, no jornal Daily Mail, sobre a proclamação da República em Portugal, em 1910.
Wilton Fonseca e Gonçalo Pereira Rosa, autores da biografia, deram com a jornalista por acaso, como contaram à agência Lusa.
"Quando escrevemos o livro 'Jornalista, espião e empresário', e até mesmo antes disso, quando escrevi 'Da Monarquia ao Estado Novo: história das agências noticiosas em Portugal', observámos que Luís Lupi, o fundador da primeira agência noticiosa portuguesa, mencionou algumas vezes o nome de Alice [Oram], que trabalhou com ele na Lusitânia e na Associated Press [AP]", relatou Wilson Fonseca. "Como [Lupi] não era muito simpático nas referências que fez dela, pensámos - porque sabemos o grande malandro que ele era - que ela deveria ser um caso interessante, que merecia investigação. E não nos enganámos!".
Em 1912, Alice Oram foi presa por suposta participação numa conspiração para restaurar a monarquia em Portugal. A sua prisão teve cobertura jornalística internacional.
Alice acabou absolvida, tendo-se defendido afirmando que "frequentava pessoas de toda a formação política por precisar de colher notícias junto de quem pudesse fornecê-las", escreve a jornalista Maria Antónia Palla no prefácio da biografia.
As buscas feitas à sua casa e à dos pais, nada revelaram que a incriminasse. "Ela desempenhou um jogo perigoso; era 'go between' entre os monárquicos que tinham ficado em Portugal e a família real e um grande grupo de pessoas que tinham buscado o exílio em Londres. Escondia documentos nas roupas, levava-os para os barcos ingleses ancorados em Lisboa e entregava-os aos cuidados dos capitães, que os transportavam para Londres. Tantas fez que acabou por ser acusada de conspirar contra República. Foi presa e julgada, tendo sido ilibada", disse Fonseca.
Palla que a considera uma "personagem controversa", afirma que "o seu coração pendia inevitavelmente para os monárquicos".
Alice Oram pelas suas convicções políticas ou por solidariedade ajudou vários exilados que viviam com dificuldades financeiras, o que leva Maria Antónia Palla a colocar a questão, se era "benemérita ou espia".
Alice Oram e Virgínia Quaresma foram as primeiras jornalistas a viajar num submarino, que incluiu um mergulho, no submarino Espardate, da Armada portuguesa.
A convite do jornalista e empresário Luís Caldeira Lupi, Alice Oram fez parte da redação da primeira agência noticiosa portuguesa, Lusitânia.
Alice Oram publicou também poemas e contos, sob o pseudónimo Célia Roma.
Os autores referem a beleza e vivacidade da jornalista que se naturalizou portuguesa e morreu há 80 anos, em precárias condições financeiras, vivendo do aluguer de quartos, "abandonada pela família" que não tinha dificuldades económicas e sem nunca se ter casado.
Um fim que não se percebe, escreve Palla referindo a múltiplas atividades de Alice Oram: jornalista, tradutora e, supostamente espia, e "os conhecimentos que tinha".
Wilton Fonseca, por seu turno, afirmou à Lusa: "Todos os jornalistas são pobres, e ela não era exceção. A família era dona do hotel Lawrence's, mas o dinheiro que este gerava ia para os bolsos do irmão, que estava à frente do negócio. Ela, além do dinheiro que ganhava como colaboradora de jornais, tradutora e poeta, poucas vezes teve um emprego fixo. Alugava partes da sua casa como fonte de algum dinheiro extra. A família não a ajudava, acontecia até o contrário".
Para a construção desta biografia, Wilton Fonseca referiu "múltiplas fontes" documentais consultadas tendo "a mais próxima delas sido um diário, nunca publicado, de um sobrinho-neto", depositado na Biblioteca Nacional.
"Mas ao longo da pesquisa tive de passar dias em alguns outros arquivos, tanto em Portugal como em Inglaterra, nomeadamente no Arquivos Nacionais, em Kew", acrescentou.
Questionado pela Lusa se as convicções monárquicas de Alice algumas vez driblaram a sua análise como jornalista, Fonseca afirmou: "Com certeza, mas apenas ocasionalmente. Ela foi autora da primeira notícia sobre a implantação da República. Aí usou a linguagem telegráfica das agências. Muitas vezes foi acusada pelo Lupi de não dar o 'tom' que ele queria dar às notícias que a Lusitânia fazia, favorecendo o Estado Novo. Quando a AP 'despediu' Lupi, por favorecer o Estado Novo, ela ficou à frente do escritório da agência, embora jamais tivesse sido nomeada chefe da delegação - era mulher, já bastante idosa, e tinha fama de ser monárquica...".
O livro 'Alice e as revoluções', de Wilton Fonseca e Gonçalo Pereira da Rosa, publicado pela Âncora Editora, vai ser apresentado por Maria Antónia Palla, na próxima quinta-feira, às 18h00, na Casa da Imprensa, em Lisboa.
Quanto a projetos futuros, Wilton Fonseca afirmou que pretende continuar a colaboração com Gonçalo Pereira Rosa, adiantando que estão a investigar "a vida de uma outra jornalista, também ela esquecida pelas histórias do jornalismo português". "Trata-se de uma outra anglo-portuguesa, Jo Schercliff, que morreu nos anos 1960, e chegou a trabalhar com Joaquim Letria e Dennis Redmond", correspondente da AP em Portugal durante a ditadura.
"Teve também uma vida fantástica", acrescentou Fonseca, referindo que o livro deve estar pronto no final deste ano.
Wilton Fonseca e Pereira Rosa são autores de um outro livro, 'Jornalista, Espião e Empresário -- A vida aventureira de Luís Lupi nos corredores do Estado Novo' (2022).
Wilton Fonseca nasceu em Goiânia, no Brasil, em 1948. Iniciou a carreira como jornalista no Rio de Janeiro, aos 16 anos. Licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde foi assistente de Linguística Portuguesa até 1977.
Foi redator d'O Século e do Jornal Novo, diretor e diretor adjunto das agências noticiosas ANOP e Notícias de Portugal. Também trabalhou na agência Lusa, no semanário Tempo e na RTP. Foi correspondente e colaborador de diversos jornais e estações de rádio nacionais e estrangeiras.
Fonseca foi também diretor de comunicação das fundações Luso-Americana para o Desenvolvimento e Calouste Gulbenkian. Trabalhou para as Nações Unidas em Angola, Timor-Leste, Kosovo e Burundi. É autor de 'À Sombra do Poder -- a História da Lusitânia' e 'Da Monarquia ao Estado Novo: Agências Noticiosas em Portugal'.
Com Mário de Carvalho e António Santos Gomes, escreveu uma trilogia subordinada ao tema 'Heróis Anónimos -- Jornalismo de Agência'.
Pereira Rosa nasceu em Lisboa em 1975, é jornalista desde 1994, trabalhou na imprensa desportiva e de divulgação científica. Fez parte da equipa fundadora da edição portuguesa da revista National Geographic, em 2001, e assumiu a sua direção em 2006, funções que acumula com as de diretor da National Geographic de Espanha desde janeiro de 2022.
Investigador no Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa, é autor de diversos artigos científicos e de vários livros, como 'A Quercus nas Notícias' (2006), 'Parem as Máquinas!' (2015), 'O Inspetor da PIDE que Morreu Duas Vezes' (2017), e 'Tal & Qual -- Memórias de um Jornalismo' (2020), em coautoria com José Paulo Fafe.
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