Para o maestro inglês esta é uma oportunidade de descobrir a música de Schumann e uma "obra-prima" da qual até os alemães se vão esquecendo.
A opinião é partilhada pela soprano Ana Quintans, que faz parte do elenco e reconheceu à agência Lusa só agora ter entrado em contacto com a obra, que considera maravilhosa, sendo maior o seu conhecimento do repertório de canto e piano do compositor alemão
'As Cenas do Fausto' têm por base o poema de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), que publicou em duas partes a sua tragédia em verso, saídas em 1808 e 1832.
Fausto tornou-se numa das personagens mais prolíficas da arte e do pensamento ocidentais. É o homem que vendeu a alma ao Diabo, um cientista que troca a alma por mais conhecimento.
"Robert Schumann [1810-1856] não é um compositor operático, mas compõe com uma capacidade descritiva tal, em cada uma das cenas, que é notável", realçou à agência Lusa Graeme Jenkins.
Schumann compôs especificamente para o poema de Goethe (1749-1832), inspirado numa lenda germânica do século XV. A oratória profana começa a tomar forma em 1844 e só em 1853 é terminada, pouco antes de o compositor reconhecer o seu colapso emocional.
Jenkins referiu que o autor terá exposto os seus sentimentos em partes da oratória.
Schumann apenas musicou cerca de cinco por cento do poema de Goethe, como disse à Lusa a soprano Ana Quintans, a quem foi dado o papel de Gretchen (Margarida).
O maestro disse que o maior desafio que a peça lhe apresenta reside na "sua dramática energia" e nos seus contrastes, tratando-se "da melhor música alguma vez composta".
A gravação desta oratória, sob a direção do compositor e regente Benjamin Britten, com a participação do barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau, serviu de inspiração a Jenkins para trabalhar a obra-prima de Schumann. Vinda do início dos anos 1970, trata-se de uma das mais premiadas e reeditadas gravações do antigo catálogo Decca.
Para Graeme Jenkins 'As Cenas do Fausto' inspiraram o repertório operático de Richard Wagner (1813-1883). Opinião com a qual concorda Ana Quintans, referindo que "há já essa ideia da alegoria, do simbólico, do transcendente, de uma procura incessante por alguma coisa, às vezes até conceitos metafísicos da vida".
O ambiente do poema insere-se no movimento artístico-filosófico romântico, com a transposição dos sentimentos das personagens para a natureza, referências ao transcendente, presságios, espetros, etc..
Jenkins dirige esta produção do Teatro Nacional de S. Carlos (TNSC) que conta com a participação da Orquestra Sinfónica Portuguesa e, como solistas, as sopranos Ana Quintans, Bárbara Barradas e Mariana Sousa, as contraltos Inês Constantino e Carolina Figueiredo, os tenores Leonel Pinheiro, Bruno Almeida e Sérgio Martins, os baixos André Baleiro, Tristan Hambleton e José Corvelo, além do Coro do TNSC.
O maestro realçou a prestação da OSP, referindo a sua evolução desde que a dirigiu pela primeira vez em 2017, e elogiou os cantores destacando o trabalho de Ana Quintans, "com um excelente fraseado" e a sua "competência no lieder germânico", assim como o dos tenores e até do "jovem baixo britânico Tristan Hambleton, que vai muito bem".
À Lusa Ana Quintans afirmou que esta é uma obra de "difícil abordagem", desde logo pelo facto de Schumann ter composto especificamente para os poemas de Goethe".
"Para quem preparara um obra desta dimensão, há que entrar primeiro neste texto maravilhoso, nem sempre de fácil compreensão, e depois ir à procura de todo o seu potencial expressivo. Schumann utiliza muitíssimos recursos e compôs esta obra em diferentes momentos da sua vida. Escreveu-a durante 10 anos", afirmou a soprano, referindo que a sua personagem, Gretchen, "tem um caráter bastante diferente, e está mais dentro do estilo da ópera que da oratória".
Quintans referiu que a sua ária "podia ser um 'lied' acompanhado ao piano, mas claro, que com a orquestra ganha uma outra dimensão".
A soprano reconheceu ainda que há que se ter domínio do alemão, "para se entender o que se está a dizer a cada momento e reagir a tudo isto que é um estilo melódico mas não deixa de ser declamatório".
Este é um texto romântico, defendeu Ana Quintans, justificando: "Sobretudo esta ideia do sublime, não do belo, mas do sublime, qualquer coisa que nos transcende e que comporta não só o que é formal, mas também aquilo que não tem forma, o espiritual, num sentido alargado".
"Nesta obra há um pouco de tudo. Goethe levou 60 anos a escrevê-la. Há esta história da Gretchen com Fausto, que é uma tragédia muito dura, mas depois há uma série de caminhos até chegar à salvação da alma do Fausto, há uma série de caminhos, depois do pacto que ele fez, no fundo até para entender o sentido da vida. Há uma certa espiritualidade e transcendência da obra".
Quintans admitiu a dificuldade, em termos culturais, para o público contemporâneo entender esta oratória, o que não aconteceria no século XIX, quando se estreou [1862], o que justifica, segundo a soprano, o compositor ter-se coibido a não fazer todas as cenas do poema original.
"Entre a minha primeira cena, o encontro fortuito no jardim, até à minha segunda cena, de pedido de ajuda a Nossa Senhora das Dores, há um hiato enorme. Na altura não constituía um problema, as pessoas estavam imbuídas destas histórias, o próprio mito do Fausto já existia".
Para Ana Quintans, "hoje em dia há a necessidade de um público não conhecedor preparar-se para um concertos destes. Tem de haver uma certa preparação, não dá para vir e usufruir só da música, é um texto que leva o seu tempo".
Daí a cantora lírica aconselhar o público a assistir à conversa que antecede o concerto, o que "ajuda muito a fruir deste objeto artístico".
No sábado, às 17:00, uma hora e meia antes do início do concerto, Andrea Lupi modera uma conversa entre o musicólogo Edward Ayres de Abreu, diretor do Museu Nacional da Música, e o filósofo José Pedro Serra, professor catedrático no Departamento de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
O maestro Graeme Jenkins não é um desconhecido para o público português, tendo dirigido, desde 2017, óperas e outras produções no TNSC, em Lisboa. As mais recentes foram 'Um Requiem Alemão', de Brahms, em 2022, e a ópera 'Um Navio Fantasma' ('Der fliegende Holländer'/'O navio fantasma'), de Richard Wagner, ambas em 2023.
À Lusa o maestro disse gostar de Lisboa, que definiu como "um das mais belas cidades"
O maestro inglês foi diretor musical da Ópera de Dallas (1994-2013), nos Estados Unidos. Entre outras funções, desempenhou as de maestro convidado da Ópera de Colónia, na Alemanha, (1997-2002). Trabalhou com a Royal Opera House e a English National Opera, no Reino Unido, com o Grand Theatre de Genève, na Suíça, a Ópera dos Países Baixos, a Ópera de Paris, a Royal Danish Opera, a ópera da Suécia, de Berlim e a de Sydney, entre outras.
Jenkins estudou musica na Universidade de Cambridge, tendo dirigido a Royal College of Music Symphony Orchestra com Norman Del Mar e David Willcocks.
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