"Saí de Portugal porque não me revejo na forma como vivemos o futebol"
Poucos dias depois de conquistar da Taça do Rei, o técnico português faz o balanço da temporada de estreia na Arábia Saudita e abre o coração para explicar as tristezas e desilusões que levou do nosso futebol.
© twitter Al Taawon
Desporto Pedro Emanuel
Depois de dois troféus no Chipre, ao serviço do Apollon, Pedro Emanuel enriqueceu novamente o currículo no estrangeiro e tornou-se um dos 'reis' da Arábia Saudita. O técnico português conduziu o Al Taawon à conquista da Taça, ao vencer o Al Ittihad na final, por 2-1, e deixou em festa a região de Buraydah, no interior do país.
Feliz por alcançar um feito que o emblema saudita não conseguia há 63 anos, o treinador de 44 anos faz o balanço de uma temporada de estreia fantástica a todos os níveis e explica as razões que o levaram a deixar Portugal.
Uma entrevista direta e emotiva de um treinador que, tal como outros, continua a elevar o nome do nosso país ao mais alto patamar do futebol mundial. Pedro Emanuel em exclusivo ao Desporto ao Minuto.
Treinador português venceu a Taça da Arábia Saudita, feito que o Al Taawon não conseguia há 63 anos © twitter Al Taawon
O que é que lhe vai na alma após esta conquista histórica?
Foi fantástico! Não foi um risco para mim vir para aqui, honestamente. Foi uma decisão muito ponderada. Admito que é algo que me deixa orgulhoso, primeiro pela opção que tomei, depois pela capacidade que tivemos para manter um nível elevado ao longo de toda a época e, por fim, pela conquista da Taça. Em 63 anos de história, foi a primeira vez que o clube conquistou este título e acho que esta foi uma vitória importante também para a própria cidade.
O facto de ser uma equipa vista como 'outsider', em comparação com rivais como o Al Hilal ou Al Nassr, valoriza ainda mais este feito?
Sim, além disso estamos no interior do país, termos muito menos visibilidade e um poder financeiro totalmente diferente das principais equipas da Arábia Saudita. Claro que tudo isso valoriza ainda mais esta conquista.
— Ricardo Machado (@RMachado23) 2 de maio de 2019
Sente que contribuiu para que o nome do treinador português fosse uma vez mais reforçado no panorama internacional?
O mérito não é só meu, logicamente, mas acho que para o treinador português é muito bom. Ainda ontem me ligaram dois agentes sauditas para lhes facultar nomes de colegas portugueses que pudessem vir para cá. Isto porque viram o trabalho do Jorge Jesus enquanto cá esteve, o trabalho que o Rui Vitória está a desenvolver, o meu aqui no Al Taawon e do José Gomes durante a fase em que desempenhou funções aqui. Nós temos o mercado bem aberto aqui na Arábia Saudita, não só pela forma como trabalhamos, mas como pela maneira que implementamos as nossas ideias e que permite que os jogadores se sintam bem.
O treinador português é hoje mais valorizado no estrangeiro do que dentro de portas?
Eu acho que essa é que é a verdadeira questão! Penso que somos demasiado exigentes e negativistas para o trabalho que desenvolvemos internamente. Pela posição que ocupamos, digamos que nós somos o Moreirense da Arábia Saudita. Só que nós temos um orçamento que nos permite ir buscar o Nildo Petrolina em janeiro e o Moreirense não tem essa capacidade. Isto para dizer que as limitações no futebol português são muito grandes. Eu sou sincero: Saí de Portugal porque não me revejo na forma como vivemos o futebol.
Pedro Emanuel chegou, viu e venceu no Al Taawon. À conquista da Taça, o técnico quer ainda alcançar o terceiro lugar do campeonato © twitter Al Taawon
Existe uma necessidade urgente de mudança de mentalidades, é isso?
Sim, porque não vivemos o futebol em si e nisso tiro o chapéu aos sauditas. Eu nunca vi nenhum tipo de atrito entre claques. Há um respeito muito grande por aquilo que é o jogo, até porque a forma como eles vivem a vida é diferente. Se alguém aqui se portal mal, o castigo não é como em Portugal, que tem que ir a tribunal. Aqui não, vai diretamente para a prisão e acabou a conversa. Não há cá meios termos. E isso leva a que eles vivam o futebol em si, o espetáculo, a cantarem do início ao fim, a ficarem contentes quando ganham e tristes quando perdem, mas sempre dando maior importância ao jogo. Em Portugal falamos de tudo menos daquilo que se passou dentro das quatro linhas. Às vezes oiço dizer que estamos a perder pessoas nos estádios. Pois estamos porque eu vou a um estádio e vejo um jogo que sei, logo a partir dos 10' minutos, se calhar, que vai ficar 0-0. Aqui sei que a forma como os dirigentes querem que se promova o jogo leva a que haja golos, ficam todos contentes. Nós ganhámos 5-3 ao Al Ittihad e foi considerado um dos melhores jogos da época. Eles adoram isso porque adoram o jogo e se pagam para ter avançados é porque querem golos e espetáculo. Foi isso que me fez vir para cá.
Se alguém aqui se portal mal, o castigo não é como em Portugal, que tem que ir a tribunal. Aqui não, vai diretamente para a prisão e acabou a conversa
Acredito que a realidade seja diferente até para os próprios jornalistas...
Sem dúvida! Vou-lhe dar um exemplo. Aqui é inconcebível que um diretor de comunicação ir dizer a um jogador aquilo que ele deve ou não dizer. Aqui, no final dos jogos, o jornalista vai buscar o jogador e leva-o para o flash-interview. Ele não comunica mais ninguém. O delegado da Liga chega e diz: 'Agora vais ali falar e dizer o que te vai na alma'. E ele tem que se desenrascar, dizer bem ou mal, mas o que sente. O futebol português está muito condicionado, só podemos dizer o politicamente correto, não podemos ir contra o sistema nem contra aquilo que está implementado, não podemos falar, não podemos atuar... São demasiadas restrições! E isso está a retirar a alegria do jogo e do trabalho, pelo menos para mim. Eu queria dar o exemplo da massa adepta do Estoril, onde estive, que recebe as claques adversárias, vai conviver com elas nos jogos fora, bate-lhes palmas... Isso sim é viver o futebol! Tive um orgulho enorme em representar o Estoril, fiquei com uma relação incrível com os adeptos até ao dia em que me vim embora e até me fui despedir deles porque eles mereceram. Aqui, na Arábia Saudita, vim encontrar muito disso. Não existem insultos aqui, é pecado até. Os adeptos podem protestar e falar um pouco mais alto, mas depois passou logo.
Treinador português mostra-se satisfeito pela temporada de estreia na Arábia Saudita © twitter Al Taawon
O regresso a Portugal não está, por isso, nos planos?
Sei que vou voltar a Portugal, claro, porque é o meu país. Mas para já não! Nos próximos anos não me vejo a treinar no nosso país, porque não me identifico minimamente com aquilo que se passa. O futebol é alegria e eu não vejo essa alegria nas equipas, vejo obrigação. E quando isso acontece as pessoas têm menos capacidade para fazer aquilo que a nossa equipa fez este ano, que é acreditar até ao último minuto que pode vencer. Foi esse o grande passo que dei na minha carreira e, honestamente, algumas coisas que fiz em Portugal não fiz aqui e se sair daqui sei que estou a fazer coisas que não irei fazer noutros sítios. Mas isso é o crescimento do treinador. Este não foi muito difícil, mas muito enriquecedor também.
Nos próximos anos não me vejo a treinar no nosso país, porque não me identifico minimamente com aquilo que se passa. O futebol é alegria e eu não vejo essa alegria nas equipas, vejo obrigação
Já venceu a Taça e ainda está na luta pelo terceiro lugar. Pode dizer-se que melhor era difícil?
Tem sido uma época muito boa para nós. Fizemos uma primeira volta fantástica, com 25 pontos, e nesta segunda já superámos esse registo, tendo 27 a duas jornadas do fim. Isso prova que não houve 'picos'. Estivemos sempre nos lugares cimeiros, entre os melhores ataques e as melhores defesas e fomos muitas vezes premiados com eleições para jogadores da jornada e também treinador. Isso só foi possível também com um staff fantástico que se dedicou imenso a esta causa.
Como foi a adaptação ao país, à cultura e ao próprio futebol?
Nós temos um grupo muito homogéneo. Admito que isso me surpreendeu. Não é fácil lidarmos com uma cultura totalmente diferente, com mentalidades distintas como as que temos aqui. Além disso, é complicado trabalhar num contexto como o atual. Por exemplo, nós vamos treinar as 22h30 e estarão 33ºC ou 34ºC, com um nível de humidade muito baixa, o que dificulta a respiração dos jogadores. Só o espírito de grupo e a crença naquilo que se faz pode ajudar a levar ao sucesso.
Ainda para mais nesta fase do Ramadão...
Claro, o Ramadão obriga-nos a projetar a semana de trabalho de uma forma totalmente diferente. Temos que agendar os treinos para a noite porque os jogadores têm que ir à mesquita rezar. Ou podem rezar onde estiverem desde que estejam virados para Meca. Hoje estiveram 39º graus durante o dia, algo que também limita bastante as coisas. Os jogos são as 22h00, nos últimos anos não existiam jogos na altura do Ramadão, pois isso é contra producente para aquilo que é uma equipa de futebol. Ainda agora houve o exemplo dos três jogadores do Ajax que vão cumprir o Ramadão.
Técnico garante que o futuro passa pela Arábia Saudita e garante que voltar a Portugal não está nos planos imediatos © twitter Al Taawon
Houve algum tipo de preparação pessoal antes de aceitar este convite?
Não, não fizemos especificamente relativo ao Ramadão, pois o campeonato estava previsto terminar a 6 de maio, ou seja, antes do início do Ramadão. No entanto, por causa das competições asiáticas das quatro principais equipas da Arábia Saudita e da Taça do Rei, tiveram que alterar a calendarização, pelo que vamos ter mais duas jornadas para além daquilo que seria o normal. No entanto, antes de aceitar o convite, fui falando com algumas pessoas. Fui recomendado pelo José Gomes, que cá estava e com quem trabalhei no FC Porto e tenho uma excelente relação, e conversei com alguns jogadores que conhecia e que tinham passado por cá, que me partilharam algumas experiências. Mas o facto de aceitar passou muito pela vontade de abraçar um novo desafio.
Desafio esse totalmente diferente a todos os níveis...
Sim, desde logo porque houve um aumento do limite de estrangeiros. Aqui podemos ter oito estrangeiros, com sete a jogar, mais do que no Qatar e noutra zona envolvente. Existe, por isso, a possibilidade de impor o cunho que pretendemos e internacionalizar o futebol. Além disso, houve uma preocupação para promover o espetáculo este ano. A final da Taça foi exemplo disso mesmo, que foi uma festa absolutamente deliciosa, não só pelo jogo em si, que foi emotivo, mas também pelo espetáculo antes e depois do apito final. A juntar a isto, existe um investimento para trazer bons jogadores e boas equipas técnicas para fazer evoluir o campeonato, mas também o jogador saudita. Foi com este pacote que me foi 'vendido' e com a autonomia que tive enquanto treinador na escolha dos jogadores e na continuidade da definição do projeto que foi iniciado pelo José Gomes.
Existe um investimento para trazer bons jogadores e boas equipas técnicas para fazer evoluir o campeonato, mas também o jogador saudita
Em algum momento houve, da parte dos dirigentes, a tentação de limitarem o seu trabalho ou, pelo menos, influenciarem aquilo que são as suas funções, como aconteceu em outros clubes sauditas?
Não, nunca se intrometeram no trabalho da equipa. Foi essa estabilidade que me motivou também. Prova disso é que sete ou oito equipas mudaram três vezes de treinador. Se o trabalho do treinador é difícil em qualquer parte do mundo, aqui mais difícil se torna, pois é um povo muito emotivo, que vive intensamente o futebol e, por vezes, perdem a racionalidade.
Aqui, por exemplo, a preocupação com a boa alimentação e com o descanso é totalmente secundário
Há duas semanas, o Rui Almeida, do Troyes, falava-nos da experiência que teve na Síria e admitia que muitas vezes teve que desempenhar quase um papel de pai e educador para além do de treinador. Também se passa o mesmo aí na Arábia Saudita?
Sim, não só aqui porque acho que hoje em dia entra para dentro de campo e dar o treino não é o suficiente para nos tornarmos bons treinador. Existe a necessidade de ter outras competência, desde logo inserirmo-nos no contexto social onde vamos trabalhar e conhecer bem a cultura do país. Aqui, por exemplo, a preocupação com a boa alimentação e com o descanso é totalmente secundário, pretendem mais a socialização e têm os hábitos bem definidos. Nunca foram educados de forma diferente e, como tal, temos que lhes explicar tudo desde o início para os consciencializarmos de que assim poderão ter melhor rendimento. Mas isso faz parte das nossas tarefas enquanto treinadores.
Nesse contexto, ter jogadores portugueses ou que já conhecia do nosso campeonato foi importante até para, como dizia há pouco, conseguir incutir as suas ideias?
Eu valorizo muito aquilo que é o bom profissional, independentemente de ser ou não portugueses. Se formos a ver, por exemplo, o Cássio é brasileiro, tal como o Nildo, e o Héldon é cabo-verdiano. Vieram para acrescentar qualidade à equipa, trazer profissionalismo e também uma boa capacidade para se relacionarem com os colegas, pois vir para o contexto da Arábia Saudita, especialmente para Buraydah, não é fácil. Muitas vezes os jogadores trazem as famílias e não se adaptam, pois é uma realidade muito fechada e bastante diferente do que acontece, por exemplo em Riade, que já se está a internacionalizar a relação humana. Aqui não, há um fundamentalismo religioso muito evidente e, por isso, trazer jogadores e homens que são bons profissionais e boas pessoas é importante.
Pedro Emanuel admite que poderá tentar resgatar reforços para a próxima época em Portugal © twitter Al Taawon
Olhando diretamente para o futebol português, acha que o título está entregue ao Benfica ou que o FC Porto ainda pode sonhar?
Eu vejo de uma forma fantástica. As duas equipas estão muito próximas, não há margem de erro, o Benfica, como é natural, com o deslize do FC Porto em Vila do Conde, ficou com o título à sua mercê e acredito que até ao final vão ser jogos de alta tensão. Quem conseguir ser mais equilibrado emocionalmente, será vitorioso. O Benfica vai na frente, não podemos dizer o contrário, e vai ser campeão. Mas o que se passa no resto da classificação também é notável, nomeadamente no que diz respeito às descidas. É esta imprevisibilidade que os adeptos procuram quando vão aos estádios. Acho que se vai tudo discutir até à última jornada.
Corrida pelo título em Portugal? O Benfica vai na frente, não podemos dizer o contrário, e vai ser campeão
Como antigo jogador e antigo capitão do FC Porto, como viu esta recente polémica entre a equipa e a claque 'Super Dragões'?
Isto sempre existiu, não podemos ser hipócritas e dizer que foi só agora. Eu lembro-me perfeitamente da altura em que fomos campeões europeus e que na época seguinte foi um desastre. Houve um comportamento natural das claques, que querem sempre ganhar, mas nem sempre as coisas acontecem como nós planeamos. As claques sempre existiram, somos um povo latino, intempestivo, e isso vai sempre existir. Acho é que deve haver um pouco mais de bom senso e equilíbrio, mas também impor algumas regras para que não se chegue ao ponto de as pessoas não quererem ir ao futebol por medo do que possa acontecer. Acho que isso é demasiado triste para o nosso futebol e para a nossa imagem. Mas isto passa-se em todos os clubes. O que se passou no Sporting foi uma vergonha nacional. Esse é um dos aspetos que podemos melhorar.
Antigo central do FC Porto considera que a relação atribulada da equipa com a claque 'Super Dragões' nada dignifica o futebol.© Getty Images
Nunca viveu situação semelhante na Invicta ou chegou a sentir algum dos chamados 'apertos' por parte de elementos ligados às claques?
Não, nunca passei por uma situação dessas. Uma coisa é nós sairmos de um restaurante e haver um ou outro adepto mais exaltado e mandar um boca, mas isso acontece em todo o lado. O que acho que é um mau exemplo é as claques olharem umas para as outras e pensarem: 'Olha, aqueles fizeram aquilo e se calhar resultou'. Aí sou completamente contra e não considero normal. Joguei no Boavista também, que tinha uma claque exigente, mas nunca me aconteceu. Se me acontecesse, muito sinceramente, eu falava com a direção e ia embora. Se as pessoas não me querem, vou-me embora. Acho que as pessoas têm que respeitar o espaço de cada um e por isso mesmo era a única saída. As claques são positivas quando apoiam a equipa do início ao fim e assobiam se o resultado não for o que queriam. Mais do que isso é entrar no exagero, que é no ponto em que está o nosso futebol.
'Apertos' de elementos ligados às claques? Se me acontecesse, muito sinceramente, eu falava com a direção e ia embora
Para terminar, o seu futuro passa pela Arábia Saudita?
Sim, a ideia era abrirmos o mercado, viemos para divulgar o nosso nome e isso aconteceu, felizmente. Vamos continuar aqui os dois ou três anos que tínhamos planeado e estamos a conversar com o clube. Já alcançámos alguns objetivos que tínhamos para dois ou três anos e agora vamo-nos sentar com a direção e depois decidir. Continuar aqui, sim! Isso é garantido. Voltar a Portugal não faz parte dos meus planos e só quero continuar a conquistar coisas importantes, pois se há coisa que me orgulho é que hoje me sinto muito mais completo pelas experiências que tive.
E já tem alvos para resgatar em Portugal?
Se tiver oportunidade, vou. Já o fiz no passado e se reconheço qualidade e profissionalismo a jogadores que estão no nosso campeonato, por que razão é que não o farei? Assim os dirigentes tenham capacidade para negociar para que as coisas possam acontecer...
Obrigado e felicidades!
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