Várias terão sido as ocasiões em que o leitor ouviu falar da “família do futebol”, expressão frequentemente empregada aquando de referências generalizadas aos principais intervenientes no universo futebolístico, tais como a FIFA, confederações, associações nacionais e regionais, clubes, jogadores, treinadores, árbitros, dirigentes, entre outros. Porém, nesta família, como em muitas outras, existe um parente, não raras vezes, desconsiderado pelos demais e, atrevo-me a dizer, pela própria sociedade civil de um modo geral. Refiro-me aos empresários desportivos, vulgo agentes de jogadores ou, numa nomenclatura mais técnica e atual, os “Intermediários”.
Com efeito, esta classe profissional é frequentemente encarada de forma negativa não só pelo cidadão comum, como inclusivamente por diversos quadrantes do mundo do desporto, não sendo de todo inusitado assistirmos a acusações de mercenarismo, alusões constantes a comissões milionárias injustificadas, entre outras conclusões sumárias pouco abonadoras. E a tudo isto, acrescem insinuações públicas e permanentes quanto a alegados compadrios, de natureza ilícita e imoral, por parte de alguns dirigentes desportivos. Enfim, resumidamente, para muitos, trata-se de uma classe sem a qual o futebol e a sociedade estariam bem melhor.
Um retrato negro, ao qual, independentemente da sua verdadeira justiça, não se pode fugir e muito menos ignorar, mas que necessita de ser devidamente enquadrado e ultrapassado. Quanto mais não seja pela necessidade que a família do futebol tem em manter este parente vivo e ativo, desde que, claro está, a sua atividade seja realisticamente regulamentada e devidamente fiscalizada. E esse é precisamente o propósito do presente artigo, o qual, aliás, vem na senda do anterior.
Muito sinceramente, julgo que para se analisar a atividade de empresário desportivo e encontrarem-se as soluções mais adequadas e desejáveis para o futebol e o Desporto em geral, torna-se absolutamente imperativo conhecer tal realidade com a devida profundidade, i.e. dos livros à prática. Acresce neste caso em particular a necessidade de nos abstrairmos de preconceitos (quantas vezes errados e injustos), por forma a podermos abordar o tema de uma perspetiva imparcial, tendo bem presente o fato de que em todas as áreas de atividade - a que esta obviamente não escapa, nem poderia escapar - existem bons e maus exemplos, profissionais competentes e incompetentes, gente séria e desonesta.
Assim, sem querer entrar em questões de natureza criminal e absolutamente desconformes com os valores pilares do Desporto, não se podem ignorar os inúmeros maus exemplos e práticas deontologicamente censuráveis, algumas já profundamente enraizadas nesta atividade, nem tão pouco mitigar os graves danos que tais práticas causam nomeadamente ao nível das carreiras desportivas de jovens jogadores.
Nesse preciso contexto, desde logo importa resolver, com urgência, uma questão pertinente que se prende com o fato dos litígios emergentes da atividade de intermediação carecerem desde 2015 de um órgão jurisdicional desportivo próprio. Com efeito, cabe atualmente aos tribunais comuns (salvo estipulação das partes em contrário, no âmbito da arbitragem voluntária) dirimir os litígios resultantes desta atividade, muitas vezes padecendo do necessário conhecimento e experiência em matéria de legislação desportiva e, acima de tudo, das especificidades do Desporto.
Por outro lado, não se pode desvalorizar um profundo desconhecimento da área por parte da generalidade destes ditos profissionais, como sucede por exemplo quanto à legislação que releva para o exercício da sua atividade, consequência inevitável do livre e inexplicável acesso a esta profissão sem a necessidade de submissão a um qualquer exame de conhecimentos desde 2015 e, portanto, praticamente condicionada ao pagamento de uma taxa de inscrição na Federação Portuguesa de Futebol (à semelhança, sublinhe-se em abono da verdade, do que se passa na esmagadora maioria dos outros países) e da celebração de um seguro de responsabilidade civil. Tal realidade é, no mínimo, deveras preocupante!
E tal preocupação resulta, nem mais nem menos, da relevância que esta atividade encerra em si mesma. Na verdade, considerando a atual dinâmica do mercado do futebol a uma escala (verdadeiramente) mundial e atendendo a que diversos mercados “alternativos”, tais como o Irão e a Tailândia, remuneram alguns profissionais na casa dos 7 dígitos (leia-se em USD ou em EURO) por época desportiva, torna-se relativamente fácil antever as mais-valias que um empresário desportivo, desde que possuidor de uma boa rede de contactos e de um razoável conhecimento do futebol, pode aportar em termos de, a título meramente exemplificativo, apresentação de propostas de contratos de trabalho desportivo financeiramente vantajosas ou de assessoria a quaisquer atletas para efeitos de uma progressão desportiva desejável nas suas carreiras. Salvo melhor opinião, só por ignorância ou má-fé, é que não se consegue vislumbrar o quão difícil seria para um atleta (não necessariamente profissional), em termos de disponibilidade, capacidade e conhecimentos, se sobre ele recaísse a tarefa de encontrar um novo clube ou fazer face a abordagens de outros clubes ou mesmo potenciais parceiros comerciais, como é o caso das marcas de calçado desportivo que disputam o patrocínio de talentos, desde tenra idade. Seriam por demais óbvias as (elevadas) dificuldades sentidas pelos jogadores de um modo geral (e mesmo muitos treinadores) ao nível de um networking desejável (nacional e internacional) ou de conhecimentos técnicos generalizados, já para não mencionar a falta de disponibilidade que muitos sentiriam em conciliar tal dinâmica com a sua atividade diária (treinos, jogos, estágios, etc…), a qual, no caso de atletas profissionais, já é, por si só, exercida em regime de exclusividade.
Quanto ao quadro regulamentar aplicável, sublinha-se que a FIFA deixou de supervisionar esta atividade desde 1 de Abril de 2015, com a entrada em vigor do seu Regulamento “FIFA regulations on working with intermediaries”, o qual estabelece um conjunto de requisitos mínimos a serem implementados pelas associações nacionais quanto à figura dos denominados Intermediários. Já no panorama legislativo nacional, o regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, do contrato de formação desportiva e do contrato de representação ou intermediação (Lei 54/2017 de 14 de Julho) estipula que só podem exercer a atividade de empresário desportivo pessoas singulares ou coletivas devidamente autorizadas pelas entidades desportivas nacionais, devendo a federação desportiva dispor de um registo organizado e atualizado dos empresários desportivos. Ou seja, ambos os ordenamentos parecem estar em perfeita consonância a respeito desta atividade, sendo comum a legislação pública validar regras emanadas pelas instâncias desportivas e que resultam diretamente da sua especificidade. Igualmente em consonância com o referido regulamento FIFA, a atividade de intermediação em Portugal no futebol é determinada pelo Regulamento de Intermediários da Federação Portuguesa de Futebol, nos termos do qual o Intermediário é uma pessoa singular ou coletiva que, com capacidade jurídica, contra remuneração ou gratuitamente, representa o jogador ou o clube, em negociações, tendo em vista a assinatura (ou renovação) de um contrato de trabalho desportivo ou de um contrato de transferência. Note-se que este profissional, no desempenho da sua atividade, apenas pode representar uma das partes da relação contratual (clube ou jogador), devendo, para o efeito, estar registado na associação nacional do país onde pretende operar, sob pena de não poder participar em qualquer transação ou dos contratos de representação entretanto celebrados (os quais também estão sujeitos a registo na respetiva associação nacional) serem considerados nulos.
É igualmente de louvar o esforço efetivo por parte do legislador nacional em conferir maior transparência e assegurar a integridade do exercício da profissão, impedindo o exercício da atividade de intermediação a quem não possua idoneidade irrepreensível, tenha sido condenado por crime praticado no domínio da legislação sobre a violência, racismo, violência e xenofobia no Desporto, tenha sido condenado por crimes no domínio da dopagem ou por comportamentos suscetíveis de afetar a verdade, a lealdade e a correção da competição e do seu resultado na atividade desportiva e, ainda, quem tiver sido condenado por qualquer crime punível com pena de prisão superior a três anos. Por razões óbvias, também as sociedades e clubes desportivos, os dirigentes desportivos, treinadores, atletas, árbitros, médicos e massagistas, se encontram impedidos do exercício desta atividade.
E julgo ser precisamente num claro sinal de reconhecimento desta realidade, assumindo as suas vastas responsabilidades enquanto instituição que gere e supervisiona o futebol a nível mundial - como aliás tem sido seu apanágio ao longo destes últimos anos, algo que é de enaltecer - que a própria FIFA comunicou publicamente a sua intenção de proceder à reforma desta atividade, nomeadamente, entre outras excelentes medidas, reintroduzindo-se um sistema de licenças sujeitas a exames de conhecimentos e estabelecendo-se uma solução jurisdicional competente para dirimir os respetivos litígios no seio da referida “família do futebol”, com o objetivo inequívoco de proteger a estabilidade contratual e elevar os padrões de profissionalismo desta atividade, paralelamente assegurando uma observação mais eficaz da ética desportiva, a bem do Desporto em geral.
Resta-nos então aguardar pela definição destas novas medidas, assim como pela sua aplicação concreta, que como bem sabemos, é a verdadeira prova de fogo de qualquer boa ideia.