Meio século de evolução ajuda a explicar as mudanças no campo desportivo, mas também no político e social, e se em 1964 Tóquio se mostrava ao mundo e se preparava para décadas de turismo de todo o mundo, em 2021 é um povo desconfiado do evento, dada a pandemia de covid-19, que recebe as delegações.
Recuperava o Japão da II Guerra, a caminho de se tornar uma potência, e mostrava-se deslumbrante, uma imagem diferente de uma capital sanitizada e dominada pela pandemia que ainda assola o mundo. Pelo meio, guerras, conquistas sociais e humanas, avanços desportivos e tecnológicos e o advento da globalização.
Os 17 dias de prova, contra 15 na primeira passagem pela capital nipónica, terão desta feita em ação um total de 206 comités olímpicos nacionais, bem acima dos 93 de 1964, em que 20 atletas portugueses (apenas uma mulher: a ginasta Esbela Fonseca, porta estandarte nesse ano) falharam os pódios - por comparação, serão 92 na missão portuguesa, 36 mulheres.
Sinal dos tempos, entre um mundo em plena Guerra Fria e um outro globalizado, e da postura do Comité Olímpico Internacional (COI), apostado em receber competidores de todo o mundo, a que se junta ainda uma equipa de refugiados.
A 'joia', em termos de infraestruturas, de Tóquio1964 é o Estádio Nacional Yoyogi, obra de Kenzo Tange que ainda hoje ecoa na arquitetura moderna, um símbolo imponente de um Japão ressuscitado.
É neste campo que a seleção portuguesa de andebol vai lutar pelas medalhas em Tóquio2020, num de muitos elos de ligação entre os dois eventos, com a organização atual entre o uso de vários espaços antigos, como o Nippon Budokan, casa do judo e outras artes marciais, como o estreante karaté, e a construção de novas infraestruturas.
Para lá da covid-19, nos anos anteriores à prova, a narrativa centrava-se noutro tipo de recuperação e resiliência: a de Sendai, por exemplo, devastada por um terramoto e tsunami em 2011, e de Fukushima, onde um desastre nuclear provocado pelo mesmo evento sísmico 'assustou' o globo.
Se 1964 foi usado como uma forma de demonstrar um país fortalecido e no seu máximo esplendor, o Japão de 2021 é um país consolidado na 'primeira divisão' de poderio económico, que viu 'derrapar' os custos dos mais caros Jogos de sempre, mesmo antes da pandemia, num contexto em que o olimpismo privilegia a contenção de custos.
Os próprios Jogos da Era Antiga também pretendiam unir a Grécia face à guerra e à peste, e Tóquio parece ser o local onde mais fortemente estas questões se fazem sentir nos parceiros modernos.
Em 1940, a II Guerra cancelou-os e, em 1964, em plena Guerra Fria, os nipónicos mostravam outra cara no país do sol nascente. No ano passado, viram o evento adiado em um ano devido a novo surto pestilento, no caso da covid-19.
A metrópole que hoje é Tóquio, com os seus cerca de 14 milhões de habitantes, em muito deve a esses Jogos de 1964, que chegaram a ser apelidados de melhores de sempre, numa evidência do poder da tecnologia e da inovação.
Em 2021, também um 'exército' de drones, transmissões de ponta em 12K, 5G e a realidade aumentada em algumas das modalidades vão 'casar' com fontes de energia alternativas, comboios-bala para Sapporo, casa da maratona, e dezenas de outros 'gadgets' e inovações.
A própria covid-19 obriga a um novo esforço elástico de adequação a uma nova realidade.
A intenção de demonstrar um mundo "triunfante sobre a pandemia", como a organização frisa em cada oportunidade, está bem vincada nos vários protocolos de segurança, e sanitários, que efetivamente vão criar uma 'bolha' entre participantes nos Jogos e habitantes da cidade.
Em 1964, a NASA e o Governo japonês colaboraram para lançar um satélite de comunicações para transmitir sinais de TV, levando os Jogos a um terço do planeta -- em alguns casos a cores.
Novos microfones e a introdução da reprodução em câmara lenta chegaram nesta altura, bem como os tempos computadorizados e à vista dos espectadores em cada televisor.
Fora dessa 'bolha' desportiva, melhorias nos transportes, nas infraestruturas da cidade, algumas das quais ainda em funcionamento hoje, para desporto e não só, mostraram um país a acelerar para o futuro e para um desenvolvimento sustentado que os colocou entre as potências mundiais.
Mais de meio século depois, do estádio Yoyogi ao Nippon Budokan, passando pelo parque equestre, o campo de tiro de Asaka ou o ginásio metropolitano, entre as muitas estradas que ligam as muitas cidades dentro da cidade, os comboios, o monocarril e uma infinitude de melhorias, a presença de Tóquio1964 sente-se num 2020 adiado.
O espírito 'konjo', que se traduz para uma política de "nunca desistir", tem guiado, de novo, o Governo japonês, desta vez enfrentando uma opinião pública desfavorável ao evento, condições adversas e a pressão das principais partes interessadas, um cenário muito diferente do de 1964, com um país há anos a beneficiar de uma política que incentivava o desporto na população e estava ávido de se mostrar ao mundo refeito, renascido.
"O espírito do desporto para desenvolvimento pessoal que caracterizava a era amadora foi substituído por um profissionalismo completo, incentivado por governos e corporações. O número de países envolvidos duplicou; as mulheres ganharam o direito de competir em igualdade. (...) Os anos no entretanto viram o fim do apartheid, da Guerra Fria, a aceleração da globalização capitalista, um foco crescente nos direitos humanos", lembrou, em outubro de 2020, o docente universitário canadiano Bruce Kidd.
Kidd, agora professor na Universidade de Toronto, esteve na equipa de atletismo do Canadá em 1964 e lembrou num discurso que, apesar do desenvolvimento do planeta, este "continua a ser rasgado por conflitos violentos, refugiados, pandemias devastadoras como a do HIV, Ébola e o coronavírus causador da covid-19, e crescente desigualdade, alterações climáticas e fome".
"Qualquer história do movimento olímpico entre 1964 e 2020 terá de tocar nestes pontos. (...) Depois da covid-19 e dos protestos mundiais de atletas por justiça, o desporto nunca mais será o mesmo. A pandemia e os protestos contra racismo e violência e contra refugiados expuseram as fragilidades e desigualdades do contrato social global. (...) No novo normal, é muito possível que Jogos Olímpicos no futuro sejam muito diferentes de algo que possamos imaginar. Acredito que a democratização e reformas interculturais, baseadas nos direitos humanos, serão urgentemente precisas", rematou.
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