"Fui de carrinha até Donetsk, passei 14 checkpoints e a frente de guerra"

Os conflitos entre Rússia e Ucrânia não são propriamente recentes. Em conversa com o Desporto ao Minuto, Miguel Cardoso contou a experiência de viver numa guerra civil, situada exatamente na cidade em que vivia, e contou momentos marcantes como viagens de regresso ao país e ainda... discussões profundas sobre o tema dentro do próprio Shakthar Donetsk.

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© Shakthar Donetsk

Tiago Antunes
24/02/2022 17:43 ‧ 24/02/2022 por Tiago Antunes

Desporto

Exclusivo

O conflito entre Rússia e Ucrânia marca a atualidade no mundo e, no meio da comunidade portuguesa, há quem tenha vivido de perto, apesar de noutros períodos, o conflito entre estas duas nações.

É caso de Miguel Cardoso, treinador português que trabalhou nas camadas jovens do Shakthar Donetsk entre 2013 e 2017, e que presenciou o início de uma escalada de conflitos, logo a partir de 2014, isto quando as tropas separatistas dominaram a região de Dombass, há poucos dias reconhecida como território independente por Vladimir Putin. Em conversa em exclusivo ao Desporto ao Minuto, o técnico de 49 fez a sua leitura dos acontecimentos e apontou o dedo à Comunidade Internacional pela falta de apoio à Ucrânia desde do começo da guerra civil.

"Vivi quatro anos e meio na Ucrânia, em três cidades distintas, e fui o único português, dos que esteve no Shakhtar, que viveu mesmo em Donetsk. Eu vivi toda a escalada, não só de violência, como também de fenómenos sociais, como o Euromaidan e os conflitos em Donestsk, o início da guerra e a mudança do clube para Poltava e depois para Kiev. Obviamente que é com muita dor e com muita mágoa que vejo esta situação, tal como foi com muita dor e muita mágoa que vi, em 2014, a Comunidade Internacional a passar ao lado daquilo que estava a acontecer em Donetsk, porque isto não aconteceu só agora, já acontece desde 2014. Acredito que, efetivamente, a Ucrânia não passará de uma vítima de tudo isto, é um conflito que tem muita história por trás, questões muito profundas da história mundial. Teríamos de recuar 60 anos na história para compreender um bocadinho de tudo isto. Muitas pessoas estavam insatisfeitas com o curso político que vai sendo tomado em diferente sentidos pelo próprio país e depois deu-se um aproveitamento disso por parte da Rússia", começou por contar.

Notícias ao Minuto [Miguel Cardoso trabalhou na Ucrânia entre 2013 e 2017]© Shakthar Donetsk  

Foi em 2014 que os grupos separatistas pró-Rússia começaram a dominar território ucraniano. Miguel Cardoso estava precisamente nessa área e contou aquilo a que assistia diariamente, na cidade de Donetsk.

"Das coisas que mais me lembro, e que, de facto, foram muito marcantes para mim, foi ver o conflito entre pessoas, pessoas irmãs, muitas de sangue, outras por serem do mesmo país, a terem opiniões diferentes relativamente àquilo que querem para o seu próprio país. Eu recordo que o Euromaidan aconteceu porque havia um descontentamento grande dentro do país com as políticas do presidente Yanukóvytch, políticas pró-Rússia, com corrupção, com a não aproximação à Europa e subsequente aproximação à Rússia. Isso levou as pessoas à rua e deu-se a queda do governo. É a partir daí que tudo isto acontece, quando a Rússia percebe que a sua influência na Ucrânia ia ficar diminuída com uma mudança de presidente e de políticas e que teria de tomar uma posição de proclamada defesa, de salvaguarda de interesses. Vivi lá durante a tomada da Crimeia e o processo foi muito simples porque a ligação à Crimeia é feita por uma estrada apenas, a preparação militar dos russos é tão diferente dos ucranianos que, numa hora, aquilo passou a ser território anexado e controlado pela Rússia. É nesta escalada de reações, que tem questões políticas, de valores, de formas de estar na vida, que as pessoas nas regiões historicamente mais ligadas à União Soviética começam a manifestar-se, e foi isso que senti em Donetsk. As pessoas saíram à rua e começaram a protestar-se pró-Rússia porque dizem que, 'se a Crimeia passou para a Rússia, nós também queremos'. Começam a dar-se manifestações pró-Rússia e pró-Ucrânia e aí é que se dá o movimento separatista", recordou.

'Porque tu és diferente de nós e nunca o vais perceber'

Dentro do próprio Shakthat Donetsk, sentia-se a divisão em relação ao conflito. Miguel Cardoso contou um episódio de discussão profunda ao qual assistiu.

"Aquilo que mais me doeu foi ter sentados à mesa os meus adjuntos, um com intenção pró-Ucrânia e outro pró-Rússia, a discutirem entre si, e eu a tentar perceber aquilo, a perguntar por que razão não conseguia perceber, e eles diziam: 'Porque tu és diferente de nós e nunca o vais perceber'. Esta é a dureza da situação. Era muito doloroso ver as pessoas a dizerem que queriam estar ligadas à Rússia e eu não perceber o porquê, ver pessoas que ainda hoje têm as suas casas e que se recusam a sair delas porque se tiverem de morrer, preferem que seja ali", disse. 

Notícias ao Minuto [A Arena de Dombass foi abandonada em 2014 durante os conflitos armados.]© Getty Images  

Miguel Cardoso contou ainda os momentos que viveu no começo da guerra civil na região de Dombass e falou do 'curioso' movimento inverso que fez e do respeito que mostrou pela situação.

"É curioso, mas eu tive um movimento ao contrário. Eu vim embora da Ucrânia, em maio, de férias para Portugal, quando o campeonato terminou para as equipas da formação, e voltei a Kiev em final de junho e a minha viagem foi no sentido contrário ao que estava a acontecer. Toda a gente a fugir e eu a voltar para lá. Já o aeroporto de Donetsk tinha sido bombardeado, fiz um voo para Kharkiv, viajei de carrinha e passei 14 checkpoints, passei a frente de guerra, cheguei a Donetsk e parecia uma cidade fantasma. Passei lá quase 20 dias com as equipas jovens do clube a trabalhar até que disseram para sairmos definitivamente da cidade e eu já era último estrangeiro a viver lá, o clube estava deslocado há meses e eu ainda estava lá. Não senti medo, senti muito respeito e que as coisas poderiam ter, de repente, uma escalada. Mas senti-me mais ou menos protegido num contexto horrendo, que é nos adaptarmos à violência. Num dia, ouvimos um tiro, no dia seguinte, vemos uma arma, noutro dia, estamos a tomar café com um grupo de pessoas com espingardas na mão, e, de repente, começa a ouvir bombas durante a noite e já dorme com elas a estourar. Eu vivi isto, daí ter ligações tão profundas com aquilo", reconheceu.

Uma proposta irrecusável

Na origem da mudança de Miguel Cardoso para a Ucrânia esteve uma proposta financeiramente irrecusável. O técnico reconhece que o país não aparentava ser perigoso ou estar exposto a uma guerra.

"Eu cheguei à Ucrânia e vi um país normalíssimo. Donetsk é uma cidade muito bonita, vivia muito na sombra do sucesso social que o clube tinha. A dimensão do clube, o projeto apresentado e a questão financeira tornaram a proposta impossível de se recusar e isso levou-me a dar esse passo. Depois, o espírito de aventureiro latente em mim levou-me a conhecer um povo diferente, um contexto social distinto. Tudo somado, foi um desafio que tinha de ter acontecido e estou muito feliz por ter lá vivido durante anos e por o ter partilhado com um povo bonito, com coisas tão interessantes", admitiu.

Notícias ao Minuto [A destruição causada pela guerra civil em 2014, em Sloviansk, a 130 quilómetros de Donetsk]© Getty Images  

Na Ucrânia, ficaram amigos, conhecidos, com quem Miguel Cardoso tem tentado falar. Alguns ainda estão nas respetivas cidades.

"As pessoas com quem costumo falar ainda não saíram, mantêm-se nos seus sítios, mas têm famílias nas zonas que acredito que já tenham sido tomadas. Estou a aguardar, a dar tempo para poder contactar e perceber como está a situação e dar um abraço solidário. Mas, conhecendo os ucranianos e espírito nacionalista daquele povo, eles vão cair, mas de pé. O poderio militar da Ucrânia, apesar de desde 2014 até agora ter sido muito melhorado, não tem nada a ver com o da Rússia. Foi muito fácil entrar na Ucrânia nessa altura e acredito que, se a Rússia de facto quiser tomar a Ucrânia, sem uma ajuda internacional clara para os ucranianos, isso vai acontecer com relativa facilidade, o que lamento", concluiu.

Leia Também: Nélson Monte quer sair da Ucrânia e pede ajuda a Portugal

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