Ainda antes de somar passagens de sucesso por vários cantos do mundo, Ricardo Pereira deu os primeiros passos na sua carreira como treinador de guarda-redes no Benfica, entre 2012 e 2016, sendo que, pelo meio, ainda terminou o percurso como futebolista no Quinta do Conde.
Em conversa com o Desporto ao Minuto, o técnico de 49 anos, que passou pelas camadas jovens do Real SC em 2011/12, não hesitou em detalhar as histórias que viveu com jogadores que brilham atualmente pela Europa fora, como foram os casos de João Virgínia, Rúben Dias e Gonçalo Guedes.
Além disso, Ricardo Pereira revelou que recebeu um convite para integrar a equipa técnica de Rúben Amorim, algo que o levou a recuar no tempo e, assim, pensar o que teria sido a sua carreira se tivesse continuado no emblema da Luz, tratando-se uma passagem que considerou "tremendamente importante" para o profissional que é atualmente.
"A passagem pelo Benfica foi tremendamente importante. Trabalhar com os melhores do país e perceber o jogo é crucial. Considero que antes não percebia tão bem. Era eu, a bola e o adversário. Pouco mais que isto. Cheguei ao Benfica e aprendi a comportar-me como treinador, que era também um formador, não só na relação com os 'miúdos', mas também com os pais e o público em ambientes mais adversos, ao defrontar grandes equipas", referiu.
"Trabalhei com Renato Paiva, Luís Araújo, Hélder Cristóvão e [Nélson] Veríssimo. Transmitiram-me muito para eu ser treinador de guarda-redes, em que é preciso ver muito além do guarda-redes. No futebol de formação, a preocupação é muito o desenvolvimento do indivíduo. Aí tive o melhor laboratório. Tive a sorte de trabalhar com técnicos que estavam e estão há muitos anos na formação do clube. Estive com um dos baluartes do treino de guarda-redes, o Hugo Oliveira [treinador de guarda-redes da equipa principal], que acreditou em mim e deu-me uma oportunidade", recordou de seguida.
Benfica? Lembro-me de vários guarda-redes que acompanhei nessa fase e, atualmente, fazem outras coisas muito bem na sua vida, como bons seres humanos e com quem mantenho boas relações. Para uns dará certo, para outros não
Ricardo Pereira recordou, ainda assim, casos de jogadores que não 'vingaram' no futebol, mas que atualmente são bons profissionais noutros contextos, acabando por valorizar o "desenvolvimento do ser humano", assim como a liberdade que teve para ensinar os 'miúdos' do Benfica.
"Devo muito ao Benfica naquilo que foi a minha evolução como treinador. Foi muito importante começar pelo futebol de formação e poder testar os meus próprios exercícios. Mesmo com um departamento estabelecido com base em diretrizes, a liberdade de criares o teu exercício é uma das maiores riquezas do treino. Não temos de seguir o 'by the book', ou o que se vê no YouTube, porque temos indivíduos à nossa frente e críamos os exercícios com base naquilo que é estratégico para cada contexto", enalteceu o técnico de guarda-redes.
"Pensávamos no desenvolvimento do indivíduo para poder chegar à equipa profissional do Benfica ou para poder ser profissional, desenvolvendo a sua carreira. Se não fosse nenhuma das coisas, então realçava-se o desenvolvimento como ser humano. Lembro-me de vários guarda-redes que acompanhei nessa fase e, atualmente, fazem outras coisas muito bem na sua vida, como bons seres humanos e com quem mantenho boas relações. Para uns dará certo, para outros não", relembrou.
Ricardo Pereira cruzou-se com Fernando Chalana nos juvenis do Benfica e não esquece os guarda-redes que ajudou a evoluir, tanto como profissionais, como indivíduos.© DR
Ao longo da carreira, o atual membro da equipa técnica do Real Valladolid apenas permaneceu por mais de duas épocas no mesmo sítio quando passou pelo Benfica, onde esteve durante quatro temporadas. Desafiado pelo Desporto ao Minuto a pensar como teria sido a sua vida se optasse pela estabilidade num só projeto, Ricardo Pereira não hesitou em revelar os detalhes e o contexto em que podia ter integrado a equipa técnica de Rúben Amorim, ainda antes das passagens do ex-jogador do Benfica por Sporting de Braga e Sporting.
"É interessante essa observação. Não sou pessoa de olhar muito para trás. Se o fizesse, pensaria como teria sido se eu tivesse ficado no Benfica... Houve também uma oferta, há cerca de seis anos, quando o Rúben Amorim começou a carreira. Uma pessoa de extrema confiança da parte do mister Ruben [Amorim], na altura sem clube, convidou-me para ser treinador de guarda-redes", começou por contar sobre o assunto.
"Naquela altura, eu não duvidada da capacidade do Rúben Amorim como sendo o treinador que é atualmente. Posso confessar que é o treinador em Portugal que eu mais gosto de ver trabalhar, com a equipa [Sporting] que eu mais gosto de ver jogar. Dá-me muito prazer ver o trabalho que tem sido feito em Alvalade ao longo dos últimos tempos. Se tivesse aceitado [o convite], se calhar hoje seria treinador de guarda-redes do mister Rúben Amorim [no Sporting]", vincou.
Lembro-me que o [Ricardo] Sá Pinto dizia que nos faltava mundo. Faltava experiência. A expressão era deliciosa"Essa coisa de olhar para trás e pensar se tivesse ficado aqui ou ali claramente não é para mim. Lembro-me que o Sá Pinto dizia que nos faltava mundo. Faltava experiência. A expressão era deliciosa. A verdade é que o Ricardo [Sá Pinto] teve a carreira que teve, ao jogar em Portugal, em Espanha e na Bélgica, enquanto nós não tínhamos saído ainda de Portugal", relembrou as palavras de um dos seus ex-treinadores, a par da experiência que adquiriu noutras experiências: "Olhando tudo aquilo que eu vivi nos vários contextos e a riqueza de trabalhar com treinadores e guarda-redes de tantas nacionalidades, não sei se teria ganho tanta experiência se ficasse por um só clube, que poderia perfeitamente ter sido o Benfica".
"Não se trata de instabilidade emocional de maneira nenhuma. A estabilidade emocional dá-me a minha família, com filhas de 13 e 19 anos e um casamento de quase 25 anos. Do ponto de vista profissional, tenho sentido que qualquer uma das experiência me fez crescer muito. Têm feito de mim um treinador com muito mais capacidade, com mais caminhos para atingir os objetivos que procuro", garantiu.
Ricardo Pereira começou a fazer as primeiras grandes viagens para o estrangeiro ainda na formação do Benfica.© DR
Guarda-redes como João Virgínia e Ederson Moraes chegaram a passar 'pelas mãos' de Ricardo Pereira, ainda que em contextos distintos, sendo que ambos encontram-se atualmente a dar nas vistas na Premier League (e não só), levando o treinador de 49 anos a recordar ainda outros nomes sonantes.
"Em relação ao Ederson, na verdade ele já estava na equipa principal. Treinámos juntos algumas vezes, quando ele baixava [da equipa A para a B], mas a influência direta no que toca ao contexto dele foi feita por quem estava na equipa principal. Tive a felicidade de poder estar em processo de treino e de jogo com aquele que, para mim, é um dos guarda-redes mais completos do mundo", apontou.
"Estive também com o João [Virgínia] numa fase que eu considero importante da vida dele. Faz parte do nosso trabalho. Sinto uma felicidade tremenda, mas não apenas por eles. Lembro-me de jogadores como André Ferreira, Ivan Zlobin, Miguel Santos e Bruno Varela. Quando estamos envolvidos no futebol de formação, as pessoas consideram que quanto mais alto estamos no escalão, mais promovidos seremos. Não é bem assim. Havia projetos de guarda-redes que estavam nos sub-13 ou nos sub-15", vincou, antes de referir um nome que se encontra às ordens de Roger Schmidt: "O Samuel Soares, por exemplo, era um menino nessa altura. Lembro-me que treinei com ele em sessões coletivas, em que juntávamos a malta toda e trabalhávamos diferentes momentos do jogo".
"Todos eles são profissionais, fazem aquilo que mais gostam e continuam a lutar para chegar ao mais alto patamar. O nosso trabalho passa por sermos facilitadores para que aquele talento não fiquem numa gaveta. Às vezes somos muito chatinhos com eles e, se calhar, estamos a ver coisas mais para a frente que eles não veem ainda. É na juventude que se desenvolve muito a capacidade de resiliência. Um guarda-redes que trabalhou em níveis elevados de intensidade e desenvolveu uma capacidade de sacrifício, nunca fica feliz quando um treino não lhe proporciona aquilo que precisa. Eles pedem mais e isso faz deles pessoas diferentes", enalteceu o técnico.
Rúben Dias? Logo aos 15/16 anos, percebemos que seria preciso acontecer uma hecatombe para não ser profissional de futebol. A personalidade, o profissionalismo mesmo sem ser profissional e o acompanhamento familiar disciplinar fez-nos perceber que estávamos na presença de um líder.
Apesar de se focar no treino dos seus guarda-redes, Ricardo Pereira não hesitou ainda em recordar histórias dos tempos da formação no Benfica, nomeadamente com jogadores como Rúben Dias e Gonçalo Guedes, destacando o profissionalismo e a atitude que conduziram ao que são hoje.
"O talento percebia-se muito bem. Treinámos a geração de 1997, a do Rúben Dias. Era uma equipa deliciosa, como a geração de 1996, que era a do Gonçalo Guedes. Percebia-se que muitos iam ser profissionais. O Nélson Semedo também já tinha subido e baixou para os bês, num ano muito difícil, entre outros jogadores", começou por realçar.
"Destaco um caso em que, desde muito cedo, logo nos seus 15/16 anos, percebemos que seria preciso acontecer uma hecatombe para não ser profissional de futebol. Falo do Rúben Dias. A personalidade, o profissionalismo mesmo sem ser profissional e o acompanhamento familiar disciplinar fez-nos perceber que estávamos na presença de um líder e de um possível defesa-central da equipa [principal] do Benfica. Desde muito cedo, o Rúben Dias já dirigia a equipa. Não era um 'falar por falar'. Ele dirigia os restantes dez companheiros. Até mesmo os guarda-redes. É um dos jogadores que guardo com muito carinho e saudade", contou o técnico de 49 anos, antes de revelar uma história de Gonçalo Guedes.
"No meu primeiro título de campeão de sub-17 [em 2012/13], o jogo no Olival [frente ao FC Porto] acabou mal, com alguns confrontos, mas lembro-me que o Gonçalo Guedes meteu a bola no sítio certo, num livre direto em que foi impossível para o [João Costa] Andorinha lá chegar, quando nos bastava um empate. Perguntámos o que tinha feito e ele respondeu-nos que assim já estávamos de férias. Ele não queria treinar a sério para o último jogo e assim já estava resolvido. Destaco o espírito livre dele. Divertia-se com capacidades tremendas", assinalou.
Ricardo Pereira destacou-se em diversas experiências na Europa, na Ásia e na América do Sul, com distinção, mas vincou a felicidade de ter treinado no Benfica, antes de todas essas aventuras: "Tive a felicidade de estar junto de jogadores como estes, como treinador de guarda-redes, mesmo sendo eles jogadores de campo. Dão-nos igualmente felicidade e orgulho ao vê-los como profissionais de futebol".
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