É um conceituado chef, é bi-estrelado do Alma e regressou recentemente à televisão com o objetivo de "inspirar as pessoas, não só a valorizar a cozinha portuguesa, mas também a voltarem a ter esses clássicos nas cozinhas em casa". Falamos de Henrique Sá Pessoa. No ComTradição, do 24Kitchen, cada episódio é dedicado a uma região do país e, para cada zona, o cozinheiro reinventa três clássicos da cozinha portuguesa, adicionando-lhes uma 'pitada' de chef.
"Fico muito contente porque já tenho recebido muitas fotografias de pratos feitos pelas pessoas em casa. O recordista é a alheira com ovo e grelos", confessa.
Numa entrevista ao Lifestyle ao Minuto, Sá Pessoa proclamou a sua portugalidade gastronómica, falou sobre o programa, acerca do Guia Michelin e sobre a nova geração de chefs.
Qual tem sido o feedback do ComTradição?
O feedback tem sido muito positivo. Até posso dizer que superou muito as minhas expetativas. Não é que não tivesse boas expetativas, porque tive a noção da ótima energia ao longo da rodagem do programa, mas como também já estava fora da televisão há quase dois anos, tinha uma certa dúvida se, com tantos programas de culinária, o programa iria encaixar.
Posso dizer que o feedback das minhas redes sociais rebentou, o meu Instagram está muito mais ativo do que o normal, mesmo as próprias pessoas na rua já me abordam e também sei que, em termos de resultados, pelo feedback que tenho recebido da FOX, tivemos uma estreia com a maior audiência de sempre do 24 Kitchen, o que demonstra que o programa era bastante esperado e que está a ter essa aceitação, portanto fico muito feliz.
Há cada vez mais interesse pelos 'sushis', pelos 'ceviches', e pela cozinha internacional, não tenho nada contra, mas esta nova geração mais facilmente reconhece um carpaccio ou um ceviche do que um bacalhau à Gomes de Sá ou umas tripas à moda do PortoPor que razão decidiu regressar à televisão nesta fase da sua carreira?
Esteve relacionado com a fase em que estou em termos profissionais. O Alma atingiu as duas estrelas Michelin no espaço de três anos e, obviamente, durante estes últimos anos tenho-me dedicado muito mais ao restaurante e menos a projetos televisivos. Senti que o próprio Alma, hoje em dia, é uma bandeira da gastronomia portuguesa. Tudo bem que é uma gastronomia portuguesa de atualidade, é uma gastronomia portuguesa pessoal, mas onde eu promovo, cada vez mais, a portugalidade. Sinto que tem de existir essa ligação com o grande público.
Hoje em dia há cada vez mais interesse pelos 'sushis', pelos 'ceviches', e pela cozinha internacional - não tenho nada contra porque acho que Portugal, durante muitos anos, era um país bastante fechado a outras culturas e a outras gastronomias -, mas esta nova geração mais facilmente reconhece um carpaccio ou um ceviche do que um bacalhau à Gomes de Sá ou umas tripas à moda do Porto.
Acho que é importante não perdermos essa ligação e, muitas vezes, esta nova geração de chef's é criticada por ignorar a tradição e por quer fazer pratos modernos, mas não ter essa ligação à cozinha tradicional e, portanto, através deste programa, quis homenagear a nossa gastronomia. Claro que é impossível fazer isso com 66 receitas. Poderiam existir dez temporadas de ComTradição e, mesmo assim, não seria o suficiente para apresentar todo o nosso receituário.
Sinto que as pessoas se relacionam com essa simplicidade aparente da forma como cozinho, porque inspira muita gente a arriscar e a tentar em casa. Acima de tudo é o que mais gosto - que as pessoas se sintam inspiradas em voltar para a cozinha e que também se sintam inspiradas a fazer pratos tradicionais porque acho que temos pratos fantásticos, uma gastronomia riquíssima, e há pratos que hoje em dia já não se veem nas casas portuguesas: bacalhau à Zé do Pipo, bacalhau à Gomes de Sá...
Já que falamos de gastronomia portuguesa. Qual é o seu prato favorito? Há algum que não gosta?
Adoro bacalhau, portanto, tudo o que é bacalhau assado, grelhado, à Zé do Pipo, à Gomes de Sá, à Brás... são pratos de que eu gosto. Talvez os pratos de que eu menos gosto sejam pratos como mioleira, orelha de porco... Faço-os, mas não sou um grande fã. Em termos de doçaria sou uma desgraça porque adoro tudo o que é doçaria conventual. Em muitos programas faço esses doces, sabendo que têm muito açúcar, têm muitas gemas... isso faz parte da nossa herança.
Em alguns programas tento aligeirar a quantidade de açúcar, ou acompanhar com fruta e também explicar às pessoas que muitos destes pratos são para ocasiões especiais, porque as pessoas hoje em dia também têm muito mais cuidados, têm uma consciência em relação à alimentação que não tinham há 30 ou 40 anos. Por isso é que dou esse toque: na ausência de legumes, acrescento legumes. Noutros aligeiro as gorduras e tento também modernizá-los nesse sentido.
A criatividade nunca funciona com um ‘deadline’. O pintor não diz 'daqui a 15 dias tenho um quadro perfeito', pode ser uma estimativa baseada naquilo que é o processo criativo, mas nunca é chapa três. Às vezes tenho pratos que saem naturalmente, com poucas tentativas, e tenho outros que nunca chegam ao fim Como é que surgem as ideias para os seus pratos? Qual é a inspiração?
A grande inspiração para o programa foi 'A Cozinha Tradicional Portuguesa', da Maria de Lourdes Modesto. Foi talvez o livro em que nós mais nos inspirámos. Não tanto nas receitas em si, porque as receitas são reinterpretadas por mim, mas em termos de pesquisa de receituário por distritos, a inspiração veio de muitos daqueles livros que quase toda a gente tem em casa. Fomos tentar recuperar todos esses clássicos.
No Alma, o processo é um bocadinho o mesmo. A única coisa do Alma é que muitas vezes eu tento inspirar-me mais nos ingredientes e manipulá-los de forma diferente em termos de texturas, de cozeduras, em termos técnicos. E tentar que, depois, o prato não perca a sua 'alma' - aquele sabor quando uma pessoa leva a colher na boca e consegue reconhecer uma sopa alentejana, um bacalhau à Brás ou um leitão assado, mas com uma apresentação e com uma técnica e com uns sabores muito mais apurados. É claro que a pessoa quando vai ao Alma não vai só comer, vai ter uma experiência gastronómica que é expectável de um restaurante com duas estrelas Michelin.
Quanto tempo leva a criar um prato para o Alma?
Há pratos que demoram um, dois, três meses a serem elaborados. Há pratos que vamos melhorando ao longo dos tempos, que começam de uma certa maneira, vamos refinando, refinando, refinando. Ou seja, não há 'daqui a 15 dias temos o prato feito'. Não é assim que funciona. A criatividade nunca funciona com um ‘deadline’. O pintor não diz 'daqui a 15 dias tenho um quadro perfeito', pode ser uma estimativa baseada naquilo que é o processo criativo, mas nunca é chapa três. À s vezes tenho pratos que saem naturalmente, com poucas tentativas, e tenho outros que nunca chegam ao fim. Hoje em dia o mais importante para mim é que os pratos que estejam na carta, além da experiência que proporcionam, tenham essa consistência de a pessoa ir lá em janeiro e voltar lá em março e ter a mesma sensação que teve da primeira vez que comeu o prato.
Ser chef era assim uma espécie de profissão de criminosos e de pessoas que não conseguiam arranjar mais nada para fazer. Hoje já não é visto assim, mas também há um lado glamoroso que as pessoas acham que a cozinha tem e que não existe
Regressando ao passado, como surgiu o interesse pela cozinha?
O interesse pela cozinha foi um interesse que foi crescendo. Comecei a cozinhar com 14/15 anos. Os meus pais eram divorciados e eu estava muitas vezes em casa e tinha de me desenrascar. Aos poucos e poucos fui aprendendo algumas receitas, a primeira que que aprendi foi um esparguete à bolonhesa, que foi a minha tia que me ensinou. Mas fazia aquilo um bocadinho 'modo sobrevivente teenager’. Mas lembro-me que dava sempre um toque especial, de alguma forma sentia algum gosto em fazer aquilo e os pratos saiam-me bem. Fui ganhando o estatuto de chef de cozinha dentro do meu núcleo de amigos - quando viajávamos ou quando íamos de férias para algum lado, eu era aquele que estava sempre disposto a ir para a cozinha.
Nunca pensei que isso pudesse ser uma carreira até que, nos Estados Unidos, um dos alunos de uma escola de cozinha foi falar à minha escola e explicou um bocadinho do percurso dele como chef e eu, na altura, fiquei fascinado.
Sabia que a primeira paixão, que era ser jogador de basquetebol, nunca iria acontecer, pelo menos em termos profissionais e também tinha tirado um curso de contabilidade que era algo que não me motivava de todo. Então decidi arriscar e ir para a escola de cozinha. Como se costuma dizer, assim que entrei senti que estava em casa. Foi amor à primeira vista.
A partir daí, acabei a escola, arranjei o primeiro trabalho em Londres... Acho que essa liberdade de poder viajar que a cozinha nos dá é um dos poucos luxos que temos, principalmente no início da carreira, porque depois tem o lado mau dos fins de semana, dos horários, da pressão, de toda a parte que envolve a cozinha.
Atualmente, as pessoas dão este pedestal aos chef's e acham que os chef's têm grandes vidas, fazem programas de televisão, ganham muito dinheiro, há todo um mundo glamoroso. E, hoje em dia, quando um filho chega a casa e diz ao pai que quer ser chef de cozinha isso já é uma carreira vista com bons olhos. Há 20 ou 30 anos, dizer a alguém que queria ser cozinheiro era tipo 'não tens mais nada para fazer e então ser cozinheiro é a única alternativa’. Era assim uma espécie de profissão de criminosos e de pessoas que não conseguiam arranjar mais nada para fazer. Hoje já não é visto assim, mas também há um lado glamoroso que as pessoas acham que a cozinha tem e que não existe.
Chef's que ficam obcecados em ganhar estrelas e que não olham para o lado do negócio, para o lado do staff, para o lado do cliente, normalmente têm tendência a falhar. Da mesma forma que eu digo aos jovens que saem da escola: 'se o vosso objetivo é sair da escola para ter um programa de televisão, então já estão a começar malO que mudou desde a primeira estrela Michelin do Alma?
A exposição internacional mudou muito. O Alma sempre foi um restaurante com movimento, mas claro que quando ganhámos a primeira estrela sentimos muito mais afluência de estrangeiros e muito mais reconhecimento da imprensa internacional e até mesmo, em termos de trabalho, a lista de espera passou de dois ou três dias para 15 dias, para um mês, para um mês e meio. Hoje chegamos a ter dois meses de lista de espera para ir jantar ao Alma, o que mostra que a força das estrelas Michelin também traz essa segurança e a procura é, realmente, acima do normal.
Existe uma pressão maior para inovar?
Claro, porque da mesma forma que a estrela é atribuída, também é ‘desatribuída’. Enquanto o Óscar é dado e fica para o resto da vida com o ator, no caso da estrela é como se fosse uma Liga dos Campeões - todos os anos temos de jogar para ficar na Liga. Com o Guia Michelin funciona assim - só conta o trabalho que foi feito durante um ano. Se no fim desse ano, o trabalho que foi feito está ao nível que eles acham que devia estar - seja uma, duas o três estrelas - é dado o reconhecimento e é renovado esse reconhecimento por mais um ano. Se não está ao nível que eles acham que devia estar, é retirado esse reconhecimento.
Temos agora o exemplo do restaurante que tinha as 3 estrelas há mais anos do mundo, que era o restaurante do Paul Bocuse, em Lion (França). Teve 3 estrelas durante quase 55 anos, se não me engano, e foi-lhe retirada uma estrela este ano. E vai perguntar, ‘mas porque é que ao fim de 55 anos lhe retiraram a estrela?’ Porque acharam que neste último ano o restaurante não estava ao nível que eles achavam que devia estar. Quem trabalha neste nível de cozinha sabe que todos os anos tem essa pressão.
A melhor forma de manter uma estrela é jogar ao ataque - tentar melhorar todos os aspetos da experiência que proporcionamos ao restaurante. Mas também digo sempre que os chefs não trabalham para estrelas Michelin, trabalham para os clientes. Acima de tudo temos de nos preocupar em proporcionar a melhor experiência para o cliente.
Claro que, paralelamente a isso, há uma direção que vai no sentido dos critérios que o guia Michelin procura, mas o conselho que eu dou sempre aos jovens é 'nunca devem abrir um restaurante com o objetivo de ganhar uma estrela Michelin', devem abrir o restaurante com o objetivo de este ser rentável, ter clientes satisfeitos, de ter clientes que voltam, de ter pessoas que falam sobre o nosso trabalho e sobre a nossa cozinha e, quando assim é, o reconhecimento virá naturalmente.
Agora, chef's que ficam obcecados em ganhar estrelas e que não olham para o lado do negócio, para o lado do staff, para o lado do cliente, normalmente têm tendência a falhar. Da mesma forma que eu digo aos jovens que saem da escola e dizem que querem ser os próximos ‘masterchef’ e ter um programa de televisão - eu digo-lhes sempre que 'se o vosso objetivo é sair da escola para ter um programa de televisão, então já estão a começar mal, porque isso é algo impossível de prever'.Acho que, entre todas as profissões, a cozinha continua a ser aquela que tem uma hierarquia mais militar e depois, claro, as cozinhas são ambientes quentes, são ambientes duros, às vezes pesados por existir esta pressão Portugal ainda não tem nenhum restaurante com três estrelas. Está a faltar alguma coisa?
Infelizmente não. Acho que não falta nada. O Belcanto, o Ocean...há vários restaurantes que, para mim, já estão num nível de três estrelas. Acho que isso vai acontecer naturalmente. O mais importante é que Portugal apresenta todos os anos, em termos gastronómicos, um crescimento. Não só nos restaurantes com estrela Michelin, mas também na própria qualidade da restauração no geral. Não me preocupa muito porque acho que é inevitável.
As cozinhas são sítios duros? Com toda a gritaria que aparece nos programas de televisão?
Depende um bocadinho. Nos meus inícios, comparava-se muito os ambientes das cozinhas aos ambientes militares. Um chef era uma espécie de comandante ou de capitão e depois tinha toda a sua brigada. Acho que, entre todas as profissões, a cozinha continua a ser aquela que tem uma hierarquia mais militar e depois, claro, as cozinhas são ambientes quentes, são ambientes duros, às vezes pesados por existir esta pressão.
O trabalho do chef, por ser tão particular, exige muita atenção, muitos cuidados, e há chefs que levam a coisa demasiado a sério, o que depois se reflete no tratamento das pessoas, da equipa. Mas cada vez isso se vê menos e cada vez menos as próprias pessoas aceitam esse tipo de comportamento.
Não estou a dizer que a cozinha do Alma é um recreio. Mas daí a pôr as pessoas a chorar e chamar nomes às mães e aos pais... não tolero esse tipo de comportamentos e acho que isso não é correto No meu tempo era normal o chef gritar e chamar não sei quantos nomes e, pronto, era uma coisa aceitável dentro dos parâmetros de uma cozinha de ‘fine dining’. Mas não acho que isso ainda seja um tema. Não estou a dizer que a cozinha do Alma é um recreio. É um ambiente onde há stress, onde há pressão, onde há exigência e rigor, mas daí a pôr as pessoas a chorar e chamar nomes às mães e aos pais... não tolero esse tipo de comportamentos e acho que isso não é correto.
Como olha para a nova geração de chefs?
A nova geração de chefs está melhor do que nunca. As novas gerações têm o caminho mais aberto, a economia também está mais estável, temos um fluxo turístico que está a bater recordes e tudo isso, não só permite que certos projetos sejam sustentáveis e que há 20 ou 30 anos nunca iriam funcionar, como o próprio público nacional também mostra um interesse pela gastronomia diferente do que tinha há 20 ou 30 anos. Isso permite que a criatividade e o trabalho de alguns chefs seja muito mais fácil de desenvolver.
Estamos numa fase dourada da nossa cozinha. Às vezes há uma preocupação com a cozinha tradicional, mas não concordo com isso. Acho que a cozinha tradicional nunca vai morrer porque o receituário está lá todo e acho que muitos destes chefs estão a aproveitar esse mesmo receituário para dar os seus toques pessoais.
Tenho a certeza de que quando foi inventado, alguém achou que o bacalhau à Brás era um atentado. Se calhar não correspondia àquilo que seria um prato tradicional na altura. Portanto, vão existir muitos pratos que vão ser feitos neste tempo mais moderno e que daqui a uns anos poderão ser os novos ‘bacalhau à Brás’, os novos pratos tradicionais.
Toda a gente sabe que o Cristiano Ronaldo tem mais protagonismo do que outros jogadores da seleção, mas o Cristiano Ronaldo sem os outros 10 não ganha campeonatos e aqui eu vejo um bocado como isso. Vejo-nos sempre como uma seleção nacional e não me acho mais do que os outrosExiste alguma rivalidade entre os ‘Michelin’?
Um rivalidade amigável. Em qualquer área, seja na cozinha, seja no futebol, seja na música, seja na arte, é normal que certos artistas queiram sobressair mais do que outros. Daí a não olharmos para nós todos como uma seleção nacional, também não vejo.
Toda a gente sabe que o Cristiano Ronaldo tem mais protagonismo do que outros jogadores da seleção, mas o Cristiano Ronaldo sem os outros 10 não ganha campeonatos e aqui eu vejo um bocado como isso. Vejo que os restaurantes que têm estrelas Michelin são a bandeira nacional da nossa gastronomia, pode haver chefs mais mediáticos como o José Avillez ou como eu, mas não significa que os outros chefs e os outros restaurantes não tenham também protagonismo e que não tenham também o devido mérito e respeito para pertencer a esse clube.
Vejo-nos sempre como uma seleção nacional e não me acho mais do que os outros. Somos todos diferentes. Quem vai ao restaurante do José Avillez vai ter uma experiência completamente diferente da experiência que vai ter no Alma, mas acho que isso só por si é enriquecedor, porque também mostra que a nossa gastronomia tem qualidade, mas tem muita variedade também.