Em Joane, uma pequena vila do concelho de Vila Nova de Famalicão, Vera Fernandes sempre causou sensação e foi referência de estilo. A avó materna foi quem lhe cultivou o bom gosto e, hoje, é uma promessa da moda nacional.
Em 2016, decidida a criar ruído e a lutar pelo empoderamento feminino, apresentou a Buzina ao mundo. Com uma identidade forte, as peças têm tanto de complexas como de comedidas. E, apesar de recente, o ADN da marca, ainda que sempre com um quê de experimentalismo, é certo, está bem definido: metros e metros de tecido, tafetá do qual não abre mão, uma boa dose de seda, jacquard, fitting oversized e mangas abalonadas.
Dias antes do regresso de Vera e das suas costureiras ao calendário da ModaLisboa, com uma coleção pensada ao mais ínfimo detalhe, "o mote é que independentemente do que vestirmos vamos ser sempre falados", revela ao Lifestyle ao Minuto. E, sem adiantar muito, deixa escapar que o sonho de divulgar os seus talentos lá fora está para muito breve.
Cresci no meio dos trapos, das agulhas e dos dedais
Recuemos à sua infância... Isto porque a paixão pela moda está muito relacionada com a sua avó materna Quer-nos contar de que forma?
Até entrar para a escola primária, fui praticamente criada junto da minha avó materna, que era uma modelista de mão cheia. Cresci no meio dos trapos, das agulhas e dos dedais. A minha avó dava-me tecidos para me entreter e brincar. Eu passava as tardes a enrolar novelos, a fazer saias para mim própria... E como eu era a primeira e única neta, na altura, ela fazia questão de fazer-me uma roupa nova para eu estrear todos os fins de semana com restos de tecidos que sobravam dos trabalhos que fazia para as clientes. A minha avó cultivava a minha vaidade.
Então, podemos assumir que era uma espécie de mini 'influencer'?
Diria que sim! Eu era sempre a mais básica, mas agora percebo que estava sempre muito bonita. A verdade é que eu nunca estava vestida como queria. Por minha vontade, vestir-me-ia sempre de forma mais adulta e arrojada. No entanto, hoje percebo que a minha avó educou-me o gosto. A minha filha vai ter em breve a primeira comunhão e quer ir vestida de determinada forma. Eu quero que ela vá com o vestido que eu usei na minha primeira comunhão. Não sei se lhe serve, mas gostava de fazer uma réplica, porque ele continua muito atual. Ela não vai como quer, mas creio que um dia irá agradecer-me!
Apesar de gostar de moda e considerar-me criativa, queria algo não tão ao lado para o meu futuro
Apesar de toda a ligação com a moda, optou por formar-se em psicologia. Porquê?
Fui criada em Joane, num meio muito pequeno e que, embora sempre tenha tido muita indústria relacionada com confecções e tudo isso, formar-me numa área criativa nunca foi algo posto em cima da mesa. No meu nono ano, a psicóloga que me fez o teste psicotécnico aconselhou-me a seguir artes, mas eu lembro-me de achar aquilo completamente despropositado.
Porquê?
Apesar de gostar de moda e considerar-me criativa queria algo não tão ao lado para o meu futuro. Algo á séria. Foi por isso que resolvi tirar psicologia organizacional, mas nunca cheguei a exercer, nem nunca fiz questão. Mas mesmo antes de terminar o curso, percebi que não era a minha praia.
E em 2012 tudo muda. É mãe e, meses depois, decide abriu uma loja de moda infantil.
Nesse ano aconteceu algo muito engraçada. Depois de ser mãe e de ter engordado 25 quilos, senti que tinha perdido a minha identidade. Estamos a falar de uma mulher que é muito baixinha, com 1,56 de altura, e magra. Eu era aquela pessoa que vestia qualquer coisa e isso deixou de acontecer. Foi isso que me levou a procurar esse meu lado criativo noutra área e, como tinha sido mãe e não gostava das opções que existiam para vestir a minha filha, criei uma loja de roupa infantil. A meninamanel serviu como um estímulo para me sentir realizada e acabou por ser um projeto incrível. Era uma loja muito diferente, apenas com marcas nacionais de alta costura e um passo à frente.
A certa altura, apercebe-se que as clientes gostavam muito da forma como se vestia.
Curiosamente, depois de ser mãe, tive o casamento da minha melhor amiga. Ainda estava a amamentar! Sempre usei roupa muito larga e, pela primeira vez depois de muitos anos, vi-me obrigada a recorrer a uma costureira, porque não me identificava com nenhuma peça. Idealizei o vestido e levei a ideia à costureira. Era nada mais do que um painel preto, mas foi um sucesso. Imensas pessoas vieram perguntar-me onde é que tinha comprado o vestido. Foi aí que deu o clique, o que não foi surpresa para ninguém. E a pessoa que me fez o vestido, a minha Salomé, trabalha comigo até hoje e e é o meu braço direito. Faço questão de levá-la comigo aos desfiles. Se não fosse ela eu não estaria ali. O mérito é taco a taco, das duas.
Queria dar que falar e fazer barulho
E ainda na meninamanel começa a vender as primeiras peças da Buzina. Como é que tudo aconteceu?
Na realidade, comecei a criar umas camisolas e uns vestidos e a vender essas peças na loja, mas sem revelar que eram minhas. Dizia que eram de uma marca.
Por receio das reações, insegurança?
Porque não queria que as clientes se sentissem na obrigação de comprar as roupas porque me conhecerem ou de não puderem dizer que não gostavam por ser eu fazê-las. Não queria condicioná-las. Esse não era o meu objetivo. Por isso, guardei segredo. Não contei aquilo a ninguém. Só passado um ano é que resolvi organizar um evento, já com nome e marca registada, para anunciar a existência da Buzina e revelar que era o meu novo projeto. Acabei por não conseguir conciliar a marca com a loja de criança porque, claramente, a Buzina dava-me mais prazer. Tinha chegado ao fim e vendi a meninamanel.
E porquê Buzina?
Toda eu sou novelas. Quando era mais nova, o meu programa depois de fazer os trabalhos de casa era ver novelas, sobretudo brasileiras, e quando precisei de decidir o nome da marca para tratar das coisas á séria recordei-me de uma novela onde os personagens trabalhavam numa usina. Mesmo sem saber o que era, de facto, uma uzina, achava aquilo maravilhoso. Por isso, quando surgiu este projeto, queria que a marca se chamasse usina. Fui procurar o significado ao dicionário e percebi que usina era uma espécie de fábrica, mas descobri que já existia uma marca registada com esse nome. Numa conversa de café com umas raparigas que trabalhavam comigo, decidi, então, que seria Buzina. Todos à minha volta disseram que não estava lá muito boa da cabeça e até gozavam com a ideia, mas eu disse para mim própria: vai ser mesmo isto. É um nome pesado, à semelhança da minha roupa, do qual todos se lembram. E ficou Buzina, porque eu queria dar que falar e fazer barulho.
A filha, Vera, a mãe e a avó materna.© Facebook Buzina
Fez?
A Buzina sempre trabalhou um nicho muito específico. As pessoas diziam que eu fazia sacos de batatas e burcas. Que os vestidos eram muito grandes e largos. Ninguém entendia nada de nada.
E a avó?
A minha avó é uma pessoa muito crítica e diz que eu gasto metros de tecido! Volta e meia, passo-lhe umas peças para ela ver e, apesar de já ter problemas de visão, vira-as do avesso e diz-me se estão bem feitas. Outra coisa que ela me diz sempre é que, por mais que a peça seja bonita, o que a faz é o corte, o tecido e a confeção. E tem razão.
Vestir Buzina é uma afirmação de estilo. Um 'statement'. Tudo é feito à imagem da Vera?
Sim. Eu trabalho imenso tafetá, por exemplo, porque gosto do resultado. E isso tem uma razão de ser. Quando era pequena brincava com uma camilha de tafetá da minha avó. Eu achava que era o tecido perfeito para tudo. Dizia que um dia teria uma peça toda feita de tafetá. Na altura, era uma piroseira!
Quando criou a marca imaginava que tipo de mulher a usar as suas roupas?
Honestamente, creio que todas as mulheres podem usar Buzina. Todas! Não é a roupa que faz a pessoa, é a pessoa que faz a roupa. Cada um consegue dar sempre o seu toque.
Porquê tamanho único?
As peças de tamanho único eram um sonho meu para eliminar o estigma dos tamanhos. Não tenho muita paciência para mulheres inseguras. Admito, ouço-as e entendo-as, mas custa-me. No que diz respeito a vestir, não há razão de ser. Por isso, achava que se fizesse peças de tamanho único essas mulheres podiam vesti-las como lhes apetecesse. Para mim era um vestido e para outra uma camisola. E isso funcionou durante muito tempo, mas depois chegou o online e percebi que as pessoas têm necessidade de saber o tamanho.
Não tenho um plano B. Estou no sítio perfeito a fazer o que eu mais gosto
A presença na Internet mudou tudo?
Eu tinha uma descrença total naquela ideia de ter uma loja online e uma página de Instagram bem trabalhada, porque não sou uma compradora online. O meu objetivo inicial era muito claro: ter uma loja em Joane, fazer umas peças de roupa, não precisar de recorrer a fornecedores e ter um pouco de tudo, desde calças a vestidos. Eu achava que isso me chegava, mas a Buzina começou a crescer de forma muito orgânica e eu senti necessidade de mostrar o meu trabalho ao mundo, porque a marca merecia e sempre acreditei imenso nisso. Aliás, eu não tenho um plano B. Estou no sítio perfeito a fazer o que eu mais gosto.
E foi isso que a conduziu à ModaLisboa?
Eu não sou designer, mas faço o que os designers fazem. Chamem-me o que quiserem! E Como sou uma pessoa com pouca noção, resolvi meter-me na boca do lobo, colocar-me à altura de todos os outros designers e dizer que queria participar na semana de moda de Portugal. Julgava que era um círculo muito fechado, mas deram-me o benefício da dúvida e, na minha opinião, tem corrido muitíssimo bem.
A Buzina estreou-se nas passarelas em plena pandemia...
Isso foi, sem dúvida, o pior. Mas eu sentia que não estava a atingir um sonho meu, mas sim da minha marca. Nunca foi minha ambição, mas a Buzina merece. Fiz o desfile dia 7 [de 2020]. Nesse dia fechei a loja em Joane e nunca mais a voltei a abri-la. Até hoje, o espaço funciona por marcação. Estava na crista da onda, a marca a ser mais falada do que nunca na imprensa e a pandemia ainda longe. Sou convidada para ir ao programa da Cristina Ferreira e não vejo ninguém nas ruas de Lisboa. Nos estúdios, o ambiente que se vivia era o de um funeral. Mas eu sempre muito empolgada. Um dia depois, o meu marido, que é professor, diz-me que o país vai fechar e eu não queria acreditar. Fiquei com medo, claro. Ao mesmo tempo, estava tão envolvida naquela loucura que, três semanas depois, fiz uma nova coleção, resolvi lançá-la.
Como correu?
Muito bem. Divulguei as peças com a colaboração de muitas 'influencers' que se fotogravam em casa. Eu recusava-me a parar. Estava bom demais! Basicamente, a primeira vaga afetou-me zero e a nível de vendas descobri que o online funcionava.
Desfile da coleção 'Breathe'© Ugo Camera
Pensa abrir um espaço em Lisboa?
Já equacionei, mas queria muito internacionalizar no Brasil, por exemplo. Adorava! É um país com um potencial enorme, porque é muito vanguardista na moda, e que me diz imenso. Se tivesse de viver noutra parte do mundo seria lá, pela minha paixão por novelas. Quando estive no Rio de Janeiro não preparei nenhum roteiro, porque sentia-me em casa por tudo o que tinha visto. E com o online, faz muito pouca diferença onde estamos. Até podia estar num bunker. Estamos todos ligados. Não há barreiras. Ao mesmo tempo, gosto do lado tosco da Buzina, de ser uma marca de atelier. Recuso-me a mandar isto para confeção! Aliás, eu podia estar a ganhar o dobro se isto estivesse numa confeção.
A sustentabilidade não é uma bandeira que pretenda hastear
E a internacionalização seria para quando?
Posso adiantar que está para muito breve. Quando meto uma coisa na cabeça é tudo para ontem. O meu lema de vida é querer é poder. Por vezes, perco um pouco a noção da realidade, porque os timings nem são os melhores, mas eu vou e faço. Sou super impulsiva! Por isso, convidei a Thai, uma influencer brasileira, para assistir ao meu desfile na ModaLisboa. Um passinho de cada vez. Gosto muito de pensar sobre o futuro e pouco de falar sobre ele. No fundo, procuro realizar todos os meus sonhos e este é um dos meus sonhos atuais.
Costuma dizer que a faceta sustentável da Buzina surgiu quase por mero acaso. Porquê?
Por vezes, até considero que sou mal interpretada, mas, no meu entender, ser uma marca sustentável é não ter dinheiro. Na realidade, para mim fábrica de tecidos só havia uma, que é a Riopele. Fica a três quilómetros da minha casa. Na altura em que criei a marca a fábrica abastecia quase todos os agregados familiares de Joane. E foi lá que comecei a comprar os primeiros tecidos. Mas como não tinha dinheiro para levar metros e metros de tecidos, eles mostravam-me os stocks que tinham, muito característicos e antigos. As minhas clientes reconheciam os tecidos. Posto isto, a sustentabilidade não é uma bandeira que pretenda hastear.
Que bandeiras ergue?
Defendo, por exemplo, o empoderamento da mulher, o quebrar preconceitos... Essas bandeiras quero muito hastear.
Daí dar o nome de mulheres à maioria das suas coleções?
Sim. São nomes de mulheres que via em novelas. Depois, para distinguir umas coleções das outras, as que levamos à ModaLisboa são nomes estrangeiros.
A Buzina desfila este sábado na ModaLisboa. O que é que tem na manga para este ano?
Este ano, a coleção vai chamar-se Untie [Desamarrar, em português]. O mote da coleção é que independentemente do que vestirmos vamos ser sempre falados. Por isso, mais vale vestirmos o que nos apetece. O corpo é nosso. Temos de ser educados nesse sentido. Há, no entanto, muito para dizer sobre a ModaLisboa, mas vou deixar para depois.
Leia Também: Gonçalo Peixoto: "A pandemia foi um recomeçar. 2021 foi o melhor ano"