Diabetes do tipo 1 e 2 são as mais conhecidas e as que ouve falar com mais frequência. Mas sabia que existe uma variedade de diabetes que é transitória e pode ocorrer apenas nas mulheres durante a gravidez? É a chamada diabetes gestacional.
No âmbito da rubrica Médico Explica, o Lifestyle ao Minuto falou com Ana Paula Pona e Magda Sofia Silva, médicas no Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar Barreiro Montijo e autoras do livro 'Diabetes de Bolso', para perceber melhor esta patologia.
Em Portugal, este tipo de diabetes não é muito comum. Segundo os mais recentes dados de 2018, ocorreu em 8,8% das grávidas. Ainda assim, "tem-se vindo a assistir a um aumento significativo de casos na última década", revela Ana Paula Pona.
As médicas Ana Paula Pona e Magda Sofia Silva© Centro Hospitalar Barreiro Montijo
A diabetes gestacional difere dos restantes tipos de diabetes e pode levar a algumas consequências no futuro se não for acompanhada devidamente. "No caso da mãe pode existir um aumento das infeções urinárias ou vaginais, aborto ou parto pré-termo por excesso de líquido amniótico e alguns problemas relacionados com o parto", explica Magda Sofia Silva.
O que é a diabetes gestacional?
Ana Paula Pona (APP) - A diabetes gestacional corresponde à hiperglicemia (níveis de açúcar elevados no sangue) que surge ou é detetada pela primeira vez no decurso da gravidez. Pode ocorrer em qualquer fase da gravidez, apesar de surgir mais frequentemente na segunda metade. Habitualmente desaparece após o parto. Podem existir casos em que a diabetes já existia previamente, de ‘forma silenciosa’, mas só é diagnosticada na gravidez.
Como se distingue dos outros tipos de diabetes?
Magda Sofia Silva (MSS) - Além do diagnóstico ser feito durante a gravidez, surge porque durante a gravidez, para que o bebé possa crescer de forma harmoniosa, são produzidas hormonas pela placenta que alteram o metabolismo materno e dificultam a ação da insulina, exigindo que o pâncreas se adapte e a produza em maior quantidade. Nas mães que desenvolvem este tipo de diabetes, o pâncreas não consegue produzir insulina em quantidade suficiente para compensar a resistência à insulina que as hormonas da gravidez induzem.
Na esmagadora maioria dos casos é transitória. Fica resolvida após o parto
É algo temporário ou podem existir casos em que se pode tornar permanente?
APP - Na esmagadora maioria dos casos é transitória. Fica resolvida após o parto. E neste ponto também difere dos outros tipos de diabetes, que são situações crónicas e permanentes após o diagnóstico.
Qual é a prevalência deste tipo de diabetes nas mulheres portuguesas?
APP - De acordo com os dados da edição de 2019 do Relatório Anual do Observatório Nacional da Diabetes, a prevalência da diabetes gestacional em 2018 foi de 8,8% da população parturiente do Serviço Nacional de Saúde. Tem-se vindo a assistir a um aumento significativo de casos na última década.
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Quais são os principais sintomas?
MSS - Os sintomas de diabetes não são específicos, resultam do facto de as células não conseguirem obter a glicose que precisam para as suas funções e do excesso dessa mesma glicose na circulação sanguínea. Vão desde alterações no peso, emagrecimento repentino sem causa aparente, ou grande aumento ponderal, confusão mental, visão turva, muita sede, muita fome, urgência em urinar, infeções urinárias frequentes, dificuldade na cicatrização de feridas a cansaço.
APP - No caso da diabetes gestacional, em Portugal, é feito por rotina o rastreio desta situação e por esse motivo a grávida habitualmente não apresenta qualquer sintoma na altura em que lhe é feito o diagnóstico. Na maioria das vezes, o que está presente é um aumento excessivo de peso, muita fome e cansaço. No entanto, pode haver uma suspeita da presença quando se deteta na ecografia fetal um bebé grande para o tempo de gestação.
Existem alguns fatores de risco para o aparecimento?
MSS - Existem situações que, quando estão presentes, favorecem o aparecimento tais como o excesso de peso ou obesidade materna, a existência de familiares em primeiro grau com diabetes (pais ou irmãos), a idade materna superior ou igual a 35 anos, se já teve este tipo de diabetes noutras gravidezes, se há história de bebés com peso maior que quatro quilos à nascença, e quatro ou mais partos. São também fatores de risco a presença de hipertensão, síndrome dos ovários poliquísticos ou síndrome metabólica. A naturalidade também influencia. Assim, mães provenientes da Índia, Bangladesh, Paquistão ou América-Latina desenvolvem mais frequentemente.
Podem existir complicações para a mãe e para o bebé
Como é que é feito o diagnóstico?
APP - Em Portugal, por rotina, a grávida na primeira consulta, no primeiro trimestre, realiza uma glicemia de jejum (entre 8 a 12 horas sem se alimentar), se o valor for menor do que 92 mg/dL, o resultado é normal e deverá ser feito novo rastreio às 24-28 semanas de gravidez. Se o resultado se situar entre os 92 e os 126 mg/dL é feito o diagnóstico de diabetes gestacional. Nas situações em que este valor de jejum é maior ou igual a 126 mg/dL muito provavelmente a diabetes já existia previamente à gravidez, mas não tinha sido ainda diagnosticada.
Quais são as principais consequências?
MSS - A maioria das mães com diabetes gestacional tem gravidezes normais e bebés saudáveis, sem qualquer consequência. No entanto, se depois de ter sido feito o diagnóstico não existir um bom controlo metabólico com normalização da glicemia, podem existir complicações para a mãe e para o bebé. No caso da mãe, pode existir um aumento das infeções urinárias ou vaginais, aborto ou parto pré-termo por excesso de líquido amniótico e alguns problemas relacionados com o parto, como traumatismos durante o parto, pré-eclâmpsia ou necessidade de cesariana.
E quais são os riscos para o bebé se não for tratada?
MSS - Para o bebé, um mau controlo da glicemia pode implicar o aparecimento de malformações, nomeadamente cardíacas, situação mais frequente nos casos de diabetes prévia ou diagnóstico de diabetes gestacional efetuado nas primeiras semanas de gravidez, altura crucial do desenvolvimento em que os órgãos do bebé estão a ser formados. Se a glicemia não for mantida em valores adequados podem surgir situações de macrossomia (bebés com mais de quatro quilos) o que pode levar a dificuldades no parto. São ainda complicações do mau controlo metabólico a síndrome de dificuldade respiratória, a hipoglicémia (baixa de açúcar nas primeiras horas de vida) e a icterícia (coloração amarelada da pele e mucosas) neonatais. A diabetes gestacional associa-se a um risco aumentado de diabetes tipo 2 para a mãe e para o filho na idade adulta.
De que forma é feito o tratamento?
APP - O tratamento tem como objetivo normalizar os níveis da glicemia, o que é conseguido numa grande parte dos casos com um plano alimentar equilibrado e personalizado para garantir um aporte de nutrientes adequado ao bom desenvolvimento do feto, bem como através de atividade física diária adaptada à gravidez. No caso da alimentação, é recomendado comer várias vezes ao dia, a cada duas horas e meia a três horas, não fazer um jejum noturno superior a oito horas, antes de deitar fazer sempre uma pequena ceia, evitar açúcares, doces, bebidas açucaradas e beber cerca de um litro e meio de água por dia. É fundamental fazer a autovigilância (determinações da glicemia diariamente por punção capilar - picar o dedo) até ao final da gravidez. Quando estas medidas são insuficientes para atingir os valores da glicemia adequados é necessário começar uma medicação.
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A doença pode ser passada para a criança?
APP - A diabetes é passada à criança se os pais tiverem no seu código genético esta alteração. Sabemos que crianças com história de diabetes gestacional na sua gestação têm no futuro maior probabilidade de desenvolver diabetes, obesidade, hipertensão arterial e alterações dos lípidos, como o colesterol. Possivelmente porque a exposição a um ambiente ‘tóxico’ de glicose leva a alterações metabólicas que facilitam o aparecimento destas doenças crónicas na idade adulta.
O outono e o inverno são épocas de propagação de doenças infeciosas, pelo que uma pessoa com diabetes deve aumentar os seus cuidados
De que forma se pode prevenir?
MSS - A prevenção da diabetes, nomeadamente a tipo 2 e a diabetes gestacional, prende-se com a prática de estilos de vida saudáveis. Existem fatores de risco que não podem ser modificados, como a idade ou a naturalidade. A adoção de uma alimentação saudável e a prática de atividade física regular são fundamentais para a prevenção das doenças crónicas não transmissíveis, das quais a diabetes é um exemplo, e ajudam a modificar fatores de risco como a obesidade e a hipertensão. Ao adotarmos estes comportamentos saudáveis, ainda que possamos ter no nosso código genético a informação para desenvolver a diabetes, é como se mantivéssemos esses genes ’adormecidos’ e a doença não se manifesta.
Como deve ser feito o acompanhamento da mulher? Serão necessárias mais análises e exames do que os habituais?
MSS - Além dos testes de rastreio já referidos, a partir do momento em que se faz o diagnóstico, a grávida é ensinada a fazer testes de glicemia que consistem, na maioria dos casos, em quatro avaliações diárias, em jejum e uma hora após o pequeno-almoço, uma hora após o almoço e uma hora após o jantar. Devem evitar-se as hipoglicémias, que são valores de glicemia inferiores a 70 mg/dL. A avaliação do controlo metabólico na consulta de diabetes é efetuada, geralmente, de 15 em 15 dias, uma vez que pode existir a necessidade de iniciar ou alterar doses da terapêutica com alguma frequência. Em relação aos exames, habitualmente é-lhes pedida uma ecografia cardíaca fetal para excluir as malformações que podem estar relacionadas com a diabetes. E pode ser acrescentada a determinação da hemoglobina glicada (HbA1C) nas análises trimestrais, que permite ter uma ideia do grau de controlo da glicemia ao longo do tempo. Para a autovigilância pode ser usado um dispositivo com um sensor subcutâneo que mede continuamente o valor de glucose e permite ver o controle durante as 24 horas.
É mais grave do que outro tipo de diabetes?
APP - Não é mais grave do que os outros tipos de diabetes, até porque é transitória. No entanto, como estão implicadas a mãe e o bebé e as consequências futuras do mau controlo metabólico, particularmente na vida do filho, é fundamental atuar com rapidez e eficácia.
É preciso ter algum cuidado especial numa altura do ano mais fria?
APP - A diabetes, se não controlada, pode fragilizar o sistema imunitário. O outono e o inverno são épocas de propagação de doenças infeciosas, pelo que uma pessoa com diabetes deve aumentar os seus cuidados, uma vez que estará mais suscetível a contrair infeções e uma vez doente será mais difícil controlar a sua glicemia. Assim, pode lavar frequentemente as mãos para evitar transmissão por contacto com germes deixados nas superfícies, evitar aglomerados de pessoas e exposição a pessoas doentes, beber muita água para se manter hidratada, evitar mudanças bruscas de temperatura e deverá ainda manter uma dieta equilibrada bem como atividade física regular.
E depois do parto, o que se deve fazer? É possível amamentar?
MSS - A glicemia materna é avaliada durante e após o parto. Habitualmente depois do parto e com valores normais as pesquisas de glicemia capilar terminam, assim como a terapêutica farmacológica realizada até essa data. Pode ser solicitado que mantenha uma determinação de glicemia por dia, em horários variáveis até nova avaliação pela equipa da diabetes. Para avaliar se a diabetes desapareceu é pedida uma nova PTGO (Prova de Tolerância Oral à Glicose) com duas determinações e que deverá ser realizada por volta das seis a oito semanas após o parto. É possível, e aconselhável, a amamentação, pois traz benefícios não só para a mãe como para o bebé, ajuda a mãe a perder peso e parece reduzir o risco de obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares no futuro do recém-nascido.
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