Portugal despede-se esta terça-feira do presidente e fundador do grupo Nabeiro - Delta Cafés, Rui Nabeiro, que morreu aos 91 anos no passado domingo, dia 19 de março. A morte do comendador, figura consensual que construiu um verdadeiro império na indústria do café, tem suscitado manifestações públicas de pesar, quer por parte das mais altas figuras da nação como por pessoas que não o conheciam pessoalmente, mas que admiram a sua história à distância. Como tal, impõe-se a pergunta: podemos sofrer e fazer luto por quem nunca chegámos a conhecer?
A resposta é 'sim'. Ao Lifestyle ao Minuto, a psicóloga Teresa Feijão explica que a morte de uma figura pública pode ser "sinónimo de perda profunda", porque "tendemos a formar vínculos com essas personalidades que admiramos e a criar memórias positivas associadas".
Apesar de ser unidirecional, "esta sensação de familiaridade significa que o tipo de dor que estamos a sentir pode ser muito semelhante a perder alguém querido nas nossas vida", diz. Porém, o luto é mais breve. "O que varia é a sua intensidade e duração no tempo."
As pessoas sentem-se ligadas a atores, cantores, atletas e apresentadores, mesmo quando não há interação física concreta
É possível sentir tristeza ou fazer o luto por pessoas que nunca conhecemos pessoalmente, como se tem constatado pela comoção na despedida ao comendador Rui Nabeiro?
Sim. O luto é uma resposta natural e adaptativa à perda de alguém ou de algo significativo. O ser humano cria vínculos afetivos de vários tipos e, quando são afetados pela morte, surge o sentimento de tristeza. As figuras públicas são elementos em que algumas pessoas se espelham e encontram referências e admiração. E para quem os acompanha com frequência, o seu falecimento passa a ser sinónimo de perda profunda.
Isso acontece exatamente porquê?
Porque tendemos a formar vínculos com essas personalidades que admiramos e a criar memórias positivas associadas. As pessoas sentem-se ligadas a atores, cantores, atletas e apresentadores, mesmo quando não há interação física concreta. É como se as figuras públicas passassem a fazer parte do nosso dia-a-dia, aumentando a sensação de proximidade, empatia e influenciando o nosso estado de espírito positivamente, mas também de forma negativa quando mostram os seus problemas, ficam doentes ou morrem. A morte de uma personalidade pública que admiramos pode representar uma perda daquele momento particular do nosso passado representado por uma memória especial, associada a algum ou vários momentos da nossa vida.
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O luto por estas pessoas é necessariamente mais breve do que aquele que fazemos por família e amigos? Em que é que esta dor é diferente?
Há algumas semelhanças e diferenças. Esta sensação de familiaridade significa que o tipo de dor que estamos a sentir pode ser muito semelhante a perder alguém querido nas nossas vida. Logo, há também tristeza associada, nostalgia e saudade pelas a memórias referentes ao que acompanhámos daquela pessoa e com que nos identificámos ou admirámos. Estar de luto pela morte de uma personalidade pública é também uma forma de expressarmos a nossa identidade social e, como consequência, pertencer a um grupo. Existe uma conexão emocional com aqueles que sentem o que nós estamos também a sentir. Contudo, há diferenças face ao luto familiar, porque falta-nos a ligação próxima com aquele indivíduo. Muitos nem têm histórias pessoais ou experiências partilhadas. Não temos essas memórias entrelaçadas nas quais refletir. Estando essa pessoa fora do nosso real alcance, é difícil criar uma imagem de quem essa pessoa realmente era e o que significa para nós. Em vez de refletirmos sobre a relação individual com um ente querido, após a morte de uma figura pública apenas temos experiências para uma espécie de luto coletivo que determina a forma como partilhamos a nossa dor 'à distância', através dos meios de comunicação e internet. Como a maioria de nós não conhece pessoalmente essa pessoa, a nossa perceção da mesma não se baseia em factos. E os meios de comunicação desempenham um papel fundamental na forma como fazemos o luto, nomeadamente através de várias opiniões públicas partilhadas e dependendo da forma como a morte é divulgada e acompanhada. A forma como tal acontece pode reavivar as nossas próprias experiências de perda.
Não havendo uma forma certa ou errada de reagir face a estas situações, quais as reações mais comuns?
O luto representa uma tristeza profunda pela perda de alguém com o qual criámos ligação afetiva. Este é o ponto comum. E as reações associadas, como tristeza, ansiedade, angústia, saudade, preocupação, insónia e choro fácil, são semelhantes. O que varia é a sua intensidade e duração no tempo.
Quando estas reações se prolongam no tempo ou são muito intensas e afetam o bem-estar, motivação, quotidiano e qualidade de vida física e mental do indivíduo enlutado há que considerar a ajuda de um profissional de saúde
O que é considerado um 'comportamento normal' quando estamos de luto?
Um luto dito 'normal' pode apresentar uma ampla gama de sentimentos, cognições e comportamentos, nomeadamente choque, raiva, tristeza, impotência, fadiga, saudade, culpa, ansiedade, alívio, confusão, descrença, preocupação, alucinações, desesperança, choro, perturbações de sono e, entre outros, isolamento social.
Quando é que se deve pedir ajuda?
Quando estas reações se prolongam no tempo ou são muito intensas e afetam o bem-estar, motivação, quotidiano e qualidade de vida física e mental do indivíduo enlutado há que considerar a ajuda de um profissional de saúde. Vivenciar um luto é uma das situações mais dolorosas para o ser humano. Apesar de ser uma resposta natural do ser humano a uma perda significativa, é importante, perante um agravamento da sintomatologia associada, que o luto seja elaborado, de forma a capacitar o enlutado a aceitar a realidade da perda, a pensar na pessoa que perdeu sem angústia e sem dor - ainda que alguma tristeza e saudade possam estar presentes . e a voltar a sentir equilíbrio emocional, bem-estar e esperança no futuro.
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Há um tempo para superar o luto?
O luto 'normal' tem cinco fases:
1- Negação: a pessoa enlutada não acredita, nem quer tentar acreditar na possibilidade de ter perdido um ente querido. Então, rejeita essa realidade. Esta fase do luto pode demorar minutos, dias ou semanas para passar. Nesta fase, é frequente que a pessoa tenha tendência para se isolar e distanciar de tudo que a lembre de quem partiu;
2- Raiva: sentimentos de raiva, angústia, desespero, medo, culpa e frustração manifestam-se constantemente nesta fase. Este misto de emoções domina a mente da pessoa enlutada, fazendo-a ter atitudes impulsivas e desagradáveis. Quando alguém a tenta 'puxar' para realidade, pode reagir com agressividade, ainda incapaz de aceitar a perda. É possível que, nesta fase, a pessoa enlutada expresse a sua raiva através de comportamentos autodestrutivos, como beber exageradamente, discutir com desconhecidos e agressividade. O seu estado emocional não lhe permite ter consciência da eventual gravidade de suas ações;
3- Negociação: a pessoa enlutada negocia consigo mesma ou com uma 'entidade superior' em que acredita, na tentativa desesperada de aliviar a sua dor. Pensamentos como 'se eu tivesse feito isto' ou 'se não se fizesse X coisa poderia ter revertido a situação' rondam a mente destes indivíduos nesta fase. Mesmo que tenham consciência da impossibilidade dessas ações, alimentam esses pensamentos para se confortar;
4- Depressão: uma das fases mais intensas é esta. A pessoa sente grande sofrimento, o qual se pode prolongar por semanas ou meses. Apega-se à dor causada pela perda, usando-a como 'combustível' para permanecer em estado depressivo. Chora compulsivamente, repensa as suas decisões e experiências de vida, isola-se de familiares e amigos, tem crises de saudade e não consegue retomar a sua vida habitual. Esta fase requer muito apoio e compreensão de pessoas próximas, além de um eventual acompanhamento psicológico, pois a depressão pode evoluir ao ponto de não a permitir conseguir aceitar a morte;
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5- Aceitação: é neste momento que a pessoa enlutada compreende a sua nova realidade, constituída pela ausência de quem partiu. Os sentimentos e angústias já foram externalizados, originando uma sensação de paz interior. Aceitar a perda não significa esquecer a pessoa que morreu nem esquecer os momentos bons partilhados com ela. A saudade existe e as lembranças ficam. Aceitar significa conviver pacificamente com a perda. Significa viver, mesmo sem a presença dela, compreendendo e aceitando a finitude da vida.
O luto não é um transtorno ou uma doença, é um processo natural de aceitação
A partir de que idade as crianças têm real noção da morte?
Por volta dos cinco/seis anos a criança começa a compreender o significado da morte, embora não da mesma forma que um adulto. Vê-a como algo irreversível, permanente, mas não como universal a todos os seres humanos, nomeadamente aos pais, irmãos ou a elas mesmas.
Como se aprende a aceitar a perda?
O luto não é um transtorno ou uma doença, é um processo natural de aceitação. Portanto, todos aqueles que sofreram perdas de entes queridos estiveram num processo natural de luto. Em geral, não é necessário, nem indicado, que haja controlo emocional por meio de medicamentos, pois os sentimentos não devem ser contidos e sim superados e compreendidos. Desta forma, o mais indicado para trabalhar a dor do luto é um acompanhamento psicológico, para uma melhor assimilação dessa realidade e para que, assim, a dor emocional seja amenizada. Contudo, aconselha-se eventual associação de medicamentos somente quando a ansiedade, as insónias e a depressão dominarem a situação e a vida da pessoa.
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E quando é uma morte inesperada?
Nesses casos, é sempre um choque e pode levar a um quadro depressivo intenso e a um luto mais severo, uma vez que a pessoa tem dificuldade em perceber o motivo, sendo a fase da negação tendencialmente mais longa. Como tal, o apoio psicológico é crucial para a superação e evolução do processo do luto. O papel do psicólogo é fundamental na medida em que ajuda a pessoa enlutada a gerir, lidar e encarar a perda de forma adaptativa e ajustada, propiciando uma reorganização das crenças acerca de si mesma e do mundo. Com o acompanhamento psicológico, o paciente consegue aos poucos formar novos vínculos significativos, possibilitando novos investimentos afetivos, seja em novos relacionamentos, novas oportunidades profissionais ou novas formas de viver. Gradualmente, consegue voltar a sentir o prazer de estar vivo e sentir-se produtivo, saudável e com foco positivo no investimento no seu presente e no seu futuro.
Como é que os pais e cuidadores de crianças e adolescentes podem ajudar?
Deve haver espaço para a criança ou o adolescente colocar as suas questões relativamente à morte, as quais devem ser ouvidas e respondidas com honestidade. Os pais e cuidadores podem responder relativamente ao que sabem, podem compartilhar sentimentos relacionados com a morte e a perda, receios e desconhecimento em relação a questões depois da morte. A comunicação e abertura à mesma é muito importante.
E como ajudar adultos e idosos?
Aceitando o tempo natural da duração do luto, bem como os sentimentos e que este é um processo natural. Ignorar a dor pode ser pior a médio e longo prazo. Também podemos conversar com as pessoas e partilhar sentimentos. Devemos dar apoio ao enlutado para que este se sinta compreendido. Evitar o isolamento e procurar e incentivar à procura de atividades prazerosas também ajuda a canalizar emoções e a ocupar a mente. Exercitar-se regularmente, comer bem e ter uma boa higiene de sono para permanecer saudável e com energia é também um contributo.
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