Epilepsia. "Um dos principais desafios é certamente o estigma"

O Lifestyle ao Minuto falou com Rute Teotónio, neurologista e neurofisiologista do Centro de Epilepsia Refratária do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, para desmistificar mitos enraizados na sociedade sobre epilepsia e abordar os principais desafios com que os doentes se deparam.

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Ana Rita Rebelo
12/04/2024 08:55 ‧ 12/04/2024 por Ana Rita Rebelo

Lifestyle

Entrevista

Estima-se que em todo o mundo haja 50 milhões de pessoas diagnosticadas com epilepsia. Em Portugal, serão entre 40 a 70 mil, o que equivale a cerca de uma doente em cada 200. O estigma é uma das maiores barreiras que enfrentam os indivíduos que vivem com esta condição neurológica crónica e "é tão ou mais danoso que a própria doença", disse ao Lifestyle ao Minuto Rute Teotónio, neurologista e neurofisiologista do Centro de Epilepsia Refratária do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, alertando para o "impacto muito significativo na qualidade de vida e bem-estar dos doentes e suas famílias".

A médica refere também que que a epilepsia não afeta a capacidade intelectual de quem dela padece. "Cerca de dois terços dos doentes com epilepsia não têm quaisquer crises com a toma da medicação. Na realidade, ao contrário do que por vezes se pensa, a grande maioria das pessoas com epilepsia não tem um défice intelectual."

Notícias ao Minuto © Rute Teotónio

O que é epilepsia? 

É uma doença neurológica crónica que se caracteriza pela predisposição cerebral para a ocorrência de crises epilépticas recorrentes e não provocadas, que ocorrem de forma súbita e imprevisível. Devem-se a descargas anormalmente excessivas que envolvem parte ou todo o cérebro. Estas crises são habitualmente de curta duração e manifestam-se com características diferentes de pessoa para pessoa. 

Felizmente, cerca de 60 a 70% dos doentes têm as suas crises bem controladas com a toma regular de medicação, podendo ter um estilo de vida dito 'normal', sem grandes restrições

É uma doença grave?

A sua gravidade é variável e depende primordialmente de três aspectos que, embora distintos, encontram-se frequentemente associados: a etiologia da epilepsia, o tipo e a frequência das crises epilépticas. Habitualmente, as crises epilépticas são fenómenos paroxísticos autolimitados e de curta duração que surgem de forma imprevisível. A gravidade que delas advém resulta essencialmente de eventuais quedas ou outros acidentes provocados pela presença de movimentos involuntários ou pela perturbação da consciência ocorridos durante o episódio. Felizmente, cerca de 60 a 70% dos doentes têm as suas crises bem controladas com a toma regular de medicação, podendo ter um estilo de vida dito 'normal', sem grandes restrições.

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Qual a prevalência da epilepsia no mundo e em Portugal?

Em Portugal, estima-se que existem cerca de 40 a 70 mil pessoas com Epilepsia, o que equivale a uma pessoa em cada 200. A cada ano surgem cerca de 50 novos doentes por cada 100 mil pessoas. Cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de Epilepsia. Na Europa são seis milhões de pessoas com epilepsia.

Quem é mais afetado?

A epilepsia não escolhe género, idade, etnia ou classes sociais. Pode surgir em qualquer pessoa e idade. Não há diferença de prevalência entre os sexos. Sabemos, no entanto, que a incidência é maior no primeiro ano de vida e depois dos 60 anos.

Porque que é que se desenvolve epilepsia?

As crises epilépticas resultam de uma atividade elétrica cerebral anormalmente excessiva que envolve parte ou todo o cérebro. Os doentes apresentam uma perda dos normais mecanismos de regulação que garantem o equilíbrio adequado entre a inibição e hiperexcitabilidade neuronal. Na base da perda deste equilíbrio podem estar causas estruturais - um traumatismo craniano, por exemplo -, genéticas, infeciosas, metabólicas e autoimunes.

Existem vários tipos de crises epilépticas?  

Sim. Vai tudo depender das áreas cerebrais envolvidas, sendo variável de pessoa para pessoa. As manifestações podem ser bastante subtis, apenas subjetivas e impercetíveis a terceiros. Podem passar por alterações transitórias sensitivas ou sensoriais, como um formigueiro ou perceção de odores que não são reais. Por outro lado, podemos ter episódios em que há alteração do estado da consciência e da responsividade, como se de breves lapsos de atenção ou de memória se tratassem. vezes as crises podem ser clinicamente mais aparatosas, caracterizadas pela presença de movimentos involuntários de parte ou de todo o corpo.

Qual é o tipo mais comum de epilepsia? 

A forma mais frequente de epilepsia é a dita focal, ou seja, aquela que tem início numa área relativamente restrita do cérebro, podendo ou não estender-se posteriormente para outras regiões.

Como é feito o diagnóstico?

É essencialmente clínico e tem por base a descrição que o doente ou testemunhas fazem das crises. Por esse motivo, é de extrema relevância que, sempre que possível, o doente se faça acompanhar na consulta médica por pessoas que tenham já presenciado os eventos. Os telemóveis também nos oferecem hoje a possibilidade de gravar vários momentos do nosso dia a dia, constituindo igualmente uma potencial mais-valia quando o médico procura compreender natureza dos episódios descritos.

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No entanto, para melhor esclarecer ou consolidar o diagnóstico, bem como para classificar o tipo de epilepsia e crises epilépticas, é habitualmente necessária a realização de alguns exames complementares de diagnóstico. Poderá ser solicitado o eletroencefalograma, que tem como propósito registar a atividade elétrica cerebral. Embora não seja sempre mandatório, muitas vezes o clínico considera ainda necessária a realização de exames de imagem estrutural, como a tomografia computorizada ou ressonância magnética cerebral. 

Na maior parte das vezes, o diagnóstico de epilepsia obriga a um tratamento para toda a vida

Que fatores ajudam a controlar a epilepsia?

A principal é seguramente a toma regular e adequada da medicação. Existem ainda outros cuidados que se prendem com o estilo de vida, nomeadamente a presença de uma boa higiene de sono com evicção da privação do sono ou a ingestão excessiva de álcool.

O tratamento é para toda a vida?

A duração do tratamento vai depender do tipo de epilepsia. Algumas epilepsias, que surgem em regra durante a infância, podem ser autolimitadas e acabam por resolver-se com a idade. Contudo, na maior parte das vezes, o diagnóstico de epilepsia obriga a um tratamento para toda a vida. 

Têm-se registado avanços no tratamento da epilepsia? 

Um dos aspetos com mais impacto na qualidade de vida das pessoas com epilepsia foi o desenvolvimento na área terapêutica, com o aparecimento de novos fármacos e a possibilidade de uma abordagem cirúrgica em algumas das epilepsias. No entanto, muita coisa fica ainda por fazer. Mas os doentes que conseguiram ver controladas as suas crises após a introdução de um novo medicamento ou pela cirurgia são a razão de que vale a pena apoiar a investigação, investir em recursos e melhorar a rede assistencial.

De que forma é que esta doença tem impacto no dia a dia do doente? 

Cerca de dois terços dos doentes com epilepsia não têm quaisquer crises com a toma da medicação. Na realidade, ao contrário do que por vezes se pensa, a grande maioria das pessoas com epilepsia não tem um défice intelectual. Uma percentagem substancial das pessoas só se recorda que tem epilepsia no momento da toma da medicação. O principal impacto prende-se, no caso do adulto, com a impossibilidade legal em conduzir. A lei portuguesa, aproximando-se do que está estabelecido para a maior parte da Europa, só permite a condução após um ano sem quaisquer crises epilépticas. Este é sem dúvida uma limitação muito significativa na gestão diária, principalmente quando se tem uma vida muito ativa, com menores a seu cargo e um emprego.

Em termos laborais, diria que a grande maioria dos empregos é adequada às pessoas com epilepsia. É, no entanto, relevante notar que existem situações, que não constituem a norma, em que é de facto necessário adequar as condições de trabalho. Isso impõe-se obviamente quando a presença de crises traz um risco acrescido à integridade física do próprio e de terceiros. Esta problemática surge não apenas, mas principalmente quando há necessidade de utilizar maquinaria e de conduzir. É importante ainda ressaltar que existem algumas profissões interditas a quem tem o diagnóstico de epilepsia, mesmo quando a doença está bem controlada com medicação. É o caso dos pilotos de aviação civil, condutores profissionais e elementos das forças armadas.

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Além desse, quais os principais desafios que as pessoas que padecem desta doença neurológica encontram em Portugal?

É certamente o estigma a que muitas pessoas com epilepsia são sujeitas. Infelizmente, há ainda muitas vezes a ideia pré-concebida que as pessoas com epilepsia são intelectualmente ou fisicamente menos capazes. 

Portanto, existe preconceito?

Infelizmente. O estigma e a discriminação contra as pessoas com este diagnóstico é tão ou mais danoso que a própria doença, tendo um impacto muito significativo na qualidade de vida e bem-estar dos doentes e suas famílias.  

As mulheres que padecem desta doença podem engravidar? Fala-se pouco sobre este tema...

Podem. Contudo, é muito importante que a gravidez seja planeada uma vez que poderá ser necessário um reajuste prévio da medicação de forma a evitar ou minimizar o uso de fármacos que possam causar malformações fetais.

Há risco envolvido?

Felizmente existem já opções terapêuticas que estão associadas a um risco bastante reduzido de malformações fetais, quase igual ao da mulher não medicada e sem epilepsia. De facto, na gravidez não se deve nunca parar a medicação anti-crises sem falar com o médico assistente, uma vez que a consequência das crises convulsivas maternas para o bebé é largamente superior ao risco de teratogenicidade associado aos fármacos que temos hoje disponíveis.

É fundamental aumentar a literacia da comunidade em relação a este tema, quebrar barreiras e perceber que o diagnóstico de epilepsia não é necessariamente sinónimo de menor capacidade intelectual

Durante a gravidez, a mulher deverá ter um acompanhamento mais regular com o seu neurologista, sendo um período em que reajustes na dose da medicação podem ser necessários. Habitualmente e, do ponto de vista de vigilância obstétrica, estas mulheres apresentam também algumas particularidades, sendo, por exemplo, recomendada a realização de um ecocardiograma fetal. Em relação ao parto, o diagnóstico de epilepsia não obriga a uma abordagem diferente da recomendada em relação às mulheres sem esta patologia.

No seu entender, que ideias importa desmistificar sobre esta doença e, assim, desafiar o estigma e abrir portas para a inclusão?

A grande maioria das pessoas com epilepsia não tem um défice intelectual, pode e constitui família, tem hobbies e pode praticar quase todos os desportos e atividades físicas sem limitações ou adquirindo algumas medidas de precaução adicionais. É fundamental aumentar a literacia da comunidade em relação a este tema, quebrar barreiras e perceber que o diagnóstico de epilepsia não é necessariamente sinónimo de menor capacidade intelectual.

Como devemos atuar quando estamos próximos de uma pessoa com uma crise epilética?

Se a crise for 'mais ligeira', sem queda ou movimentos convulsivos associados, mas associada a alguma confusão e comportamento estranho, devemos proteger a pessoa de um eventual perigo e dar o apoio necessário até à recuperação completa da consciência. No final, podemos procurar explicar à pessoa o que aconteceu de forma clara e calma. Se o doente apresentar uma crise convulsiva generalizada, em que há movimentos involuntários dos quatro membros e queda, devemos manter a calma e procurar controlar a duração da crise, olhando periodicamente para o relógio; proteger a cabeça da pessoa, colocando debaixo dela uma peça de roupa ou, se necessário, apoiá-la com as próprias mãos; quando os movimentos pararem, colocar a pessoa de lado e desapertar-lhe a roupa à volta do pescoço; e permanecer com a pessoa até que a mesma recupere completamente os sentidos e respire normalmente. Tão importante como saber o que fazer, é perceber o que não se deve fazer durante a crise convulsiva: não se deve introduzir qualquer objeto na boca, nem tentar puxar a língua; não se deve tentar forçar a pessoa a ficar quieta; e não se deve dar nada a beber até que a pessoa esteja completamente recuperada.

Existem associações onde estes doentes possam procurar ajuda?

Sim. A Liga Portuguesa Contra a Epilepsia (LPCE) é uma associação particular sem fins lucrativos, de cariz técnico-científico, que congrega técnicos de várias áreas, motivados em melhorar os cuidados de saúde prestados às pessoas com epilepsia em Portugal. As pessoas e familiares com epilepsia podem contactar a LPCE, colocando as suas dúvidas e expondo as suas preocupações. A LPCE tem desenvolvido várias iniciativas que visam uma maior literacia da comunidade. Uma das iniciativas a ser desenvolvida é o Projeto Epiescolas, que surgiu da vontade que a LPCE sentiu em dar resposta às necessidades veiculadas por parte de algumas escolas no que diz respeito ao maior conhecimento sobre epilepsia em contexto escolar. A LPCE proporciona formações online gratuitas, dirigidas não só aos professores, como restantes profissionais que integram a comunidade escolar. Nestes webinars são abordados temas de particular interesse em ambiente escolar, nomeadamente a identificação dos principais tipos de crises epilépticas, modo de atuação perante as mesmas e reconhecimento dos fatores que podem tornar uma crise epiléptica numa emergência médica. Para inscrever a escola, basta enviar e-mail para a LPCE a expressar o interesse na formação.

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