"Sempre que houver intervenção internacional a favorecer um dos lados, o conflito agudiza-se. É preciso favorecer os mecanismos regionais que existam, manter uma postura permanente de imparcialidade e foi isso que a comunidade internacional não fez e cada vez que interveio agudizou o conflito", disse à Lusa o major-general Raul Cunha.
O autor do livro é doutorado em História, Estudos de Segurança e Defesa; como militar prestou serviço na European Comunity Monitoring Mission (Jugoslávia) no início dos anos 1990, esteve no Quartel General da KFOR (Força de internacional) e, mais tarde, foi chefe da Componente Militar da UNMIK (Missão das Nações Unidas no Kosovo) e conselheiro militar do representante especial do secretário geral das Nações Unidas no Kosovo.
Tendo acompanhado o processo do Kosovo em particular, assim como a situação geral nos Balcãs, Raul Cunha considera que o conflito não terminou com a declaração unilateral de independência da província da Sérvia, em 17 de fevereiro de 2008.
"Houve muita parcialidade na forma como foi tratada a questão do Kosovo, ao longo do tempo. As próprias Nações Unidas, que deveria ser neutral, refletia o balanço de forças no terreno. Os acordos que a Aliança Atlântica assinou sobre os sérvios do Kosovo, por exemplo, nunca foram respeitados", lamenta.
"O que mais me desagradou sempre foi a incoerência da comunidade internacional, sobretudo do Ocidente, porque tivemos sempre um comportamento com padrões diferentes consoante as situações e não é isso a que nos habituamos como militares: acreditamos nos valores da democracia e do respeito. No caso do Kosovo e de outros na ex-Jugoslávia nunca senti essa coerência. Senti que havia uma grande injustiça da comunidade internacional", afirma.
O livro trata o tema através dos pontos de vista histórico, político, religioso, cultural, geoestratégico e diplomático, mas alerta sobretudo sobre a intervenção de organizações internacionais e potências estrangeiras e as ligações que mantiveram com a maioria albanesa da província.
"Na realidade, no terreno, nós verificávamos que todos eles cometiam erros, atos indescritíveis. Não eram só os sérvios, e, no entanto, a comunidade ocidental, sobretudo, catalogou os sérvios como os maus e a partir daí tratou-os como tal", refere Raul Cunha sublinhando as interferências de Washington e Berlim em todo o processo.
"No caso do Kosovo, a Alemanha e os Estados Unidos tiveram um papel importante. Os norte-americanos têm atualmente no terreno uma base militar que lhes permite transportar tropas do norte para o sul, do leste para oeste. É uma base importante em termos geoestratégicos. Na zona controlam as rotas do gás natural que eventualmente passem naquela região, por exemplo", diz.
Para Raul Cunha, a ONU e a Aliança Atlântica estiveram no terreno a servir os interesses de duas ou três potências e nota que com o passar dos anos não existe convivência entre as várias etnias, tal como foi prometido.
"Daí eu dizer que quase aceito que a parte albanesa do Kosovo se junte à Albânia. É mais lógico porque a única coisa que os separa é uma fronteira artificialmente criada. Têm duas seleções de futebol? Têm na prática dois votos nas instâncias internacionais. Qualquer dia terão três quando se criar uma parte albanesa da Macedónia e depois quatro quando se fizer uma parte albanesa do Montenegro", afirma acrescentando que o "sonho da Grande Albânia" continua presente.
"Não vão desistir enquanto não tiverem a 'Grande Albânia', porque na realidade aquelas são zonas onde só estão albaneses, incluindo Montenegro, Sérvia e Macedónia, são comunidades fortes e enraizadas e a tendência desde os tempos da Liga de Paris (1878) é juntarem-se numa só nação", antecipa.
O livro dedica igualmente um longo capítulo aos aspetos diplomáticos e políticos que se referem ao reconhecimento (e ao não reconhecimento) da independência por parte dos distintos países, incluindo a "hesitação" de Portugal que acabou por formalizar o reconhecimento no dia 07 de setembro de 2008, poucos dias depois da passagem da secretária de Estado norte-americana Condoleezza Rice por Lisboa.
"Para mim, obviamente, houve pressão norte-americana para Portugal assinar. Nós não reconhecíamos o Kosovo por causa da Espanha, porque é um dos nossos interesses. Eu estou convencido de que Condoleezza Rice exerceu pressão. Portugal assinou passados poucos dias de a 'senhora' estar cá", afirma.
Mais de 90% da população do Kosovo é albanesa, sendo as minorias de origem sérvia, bosníacos, "gorani" (montanheses) e "rom" (etnia cigana).
Atualmente, no contexto dos Balcãs, e após as adesões da Albânia e do Montenegro, só a Sérvia, a Bósnia-Herzegovina, a Macedónia e o Kosovo não são membros da NATO.
No Kosovo, 95,6% da população são muçulmanos e 3,7% são católicos.
O livro "Kosovo -- A Incoerência de uma Independência Inédita" (edições Colibri, 289 páginas) inclui mapas e fotografias e introduções assinadas pelo major-general Carlos Martins Branco e pelo embaixador António Tânger Corrêa.