"Desde 2016, os Estados-membros da União Europeia (UE), liderados pela Itália, têm colaborado com as autoridades da Líbia -- fornecendo embarcações, formação e assistência na coordenação de operações marítimas -- para garantir que quem tenta fugir do país por mar é intercetado" e levado de volta, critica a organização humanitária num relatório divulgado poucas horas depois de ser apresentado o novo pacto migratório da UE.
Segundo a Amnistia Internacional, só entre 1 de janeiro e 14 de setembro de 2020, foram capturadas e enviadas de volta para a Líbia 8.435 pessoas.
"Dezenas de milhares de refugiados e migrantes enfrentam ciclos de crueldade na Líbia, com pouca ou nenhuma esperança de encontrarem vias seguras e legais de saída" e, quando "arriscam as suas vidas no mar, procurando refúgio na Europa", são intercetadas e "transferidas de volta para a Líbia e entregues aos mesmos abusos dos quais tentavam escapar", descreve a Amnistia Internacional.
De acordo com o relatório hoje divulgado, os refugiados e migrantes "têm sofrido ou testemunhado execuções, desaparecimentos forçados, tortura e outros maus-tratos, violência sexual, detenções arbitrárias, extorsão, trabalho forçado e exploração" quer pelo Estado quer por milícias não estatais.
"O clima de impunidade é reinante", sublinha a organização humanitária.
A Amnistia lamenta ainda que, além dos anos de guerra, que têm permitido "um rol de chocantes abusos dos direitos humanos", os refugiados e migrantes sejam agora "injustamente acusados pela disseminação da covid-19, com base em fundamentos profundamente racistas e xenófobos".
A União Europeia e os seus Estados-membros "continuam a implementar políticas que aprisionam dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças num ciclo de abusos, demonstrando um desprezo cruel pelas vidas e pela dignidade das pessoas", afirma, no documento, a diretora-adjunta para o Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional, Diana Eltahawy.
A organização refere ainda que, este ano, "milhares de refugiados e migrantes acabaram em centros de detenção oficiais da Direção de Combate à Migração Ilegal, sob a tutela do ministro da Administração Interna do Governo de Acordo Nacional, apoiado pelas Nações Unidas, que controla a Líbia Ocidental".
Outros desapareceram após serem transferidos para locais de detenção não-oficiais, acrescenta.
Segundo adianta, a Amnistia Internacional teve acesso a vídeos que "mostram os abusos de milícias e grupos armados contra refugiados e migrantes" que, "em alguns casos, foram obrigados a participar em operações militares".
De acordo com os dados avançados pela organização, entre 2017 e 11 de setembro deste ano, apenas 5.709 refugiados beneficiaram dos programas de reinstalação que atribuem vias seguras e legais de saída da Líbia.
"As restrições de viagem impostas em resultado da pandemia de covid-19 exacerbaram ainda mais a situação, com apenas 297 refugiados retirados, este ano, da Líbia, antes do encerramento das fronteiras, em março de 2020", alerta, no relatório.
A Comissão Europeia apresentou na quarta-feira um novo Pacto para as Migrações e Asilo, com procedimentos mais rápidos e eficazes, e à luz do qual "todos os Estados-membros, sem exceção", devem assumir as suas responsabilidades e ser solidários.
Uma das grandes novidades da proposta da Comissão é um "sistema de contribuições flexíveis dos Estados-membros", que prevê que estes possam recolocar requerentes de asilo a partir do país de entrada na União ou assumir a responsabilidade de os fazer regressar aos locais de origem quando os requerimentos sejam recusados.
Bruxelas propõe ainda a introdução de um procedimento fronteiriço integrado que inclui um rastreio pré-entrada que abrange a identificação de todas as pessoas que atravessam as fronteiras externas da UE sem autorização ou que tenham sido desembarcadas após operações de busca e salvamento.
"Após o rastreio, os indivíduos podem ser canalizados para o procedimento correto, seja logo na fronteira, para certas categorias de requerentes, seja através de um procedimento normal de asilo", aponta a Comissão, argumentando que, deste modo, "serão tomadas decisões rápidas em matéria de concessão de asilo ou de regresso".
O Conselho Europeu e o Parlamento Europeu terão agora de examinar a proposta e adotar a legislação necessária "para tornar uma verdadeira política de migração e asilo da UE uma realidade".