Desaparecimento de jornalista em Maputo ressuscita passado de perseguição
Cleophas Habiyareme perdeu a família em 1996 após o genocídio no Ruanda e hoje, como refugiado em Moçambique, fantasmas de um passado de perseguição étnica voltam à sua memória, por causa do desaparecimento, em Maputo, do jornalista ruandês Ntamuhanga Cassien.
© Newsday via Getty Images
Mundo Maputo
A esposa e a filha de Cleophas Habiyareme, 59 anos, foram baleadas durante um ataque contra um campo de refugiados no Congo, um episódio que o ruandês, de etnia hutu, atribui ao regime do seu país que "sempre perseguiu opositores e intelectuais", frisou à Lusa.
"Nesse ataque, eles conseguiram prender quase metade dos refugiados e eu perdi a minha mulher e a minha filha. Fiquei apenas com o meu outro filho, que está comigo aqui", conta Habiyareme, hoje um pequeno empresário em Maputo.
O receio após a morte da família levou-o a continuar a fuga, para a Tanzânia, mas também não se sentia seguro e, por isso, decidiu fugir para Moçambique, um país mais distante e com menos ligações com o Ruanda, pelo menos na altura.
Em Moçambique, Cleophas pede o estatuto de refugiado em 2002 e instala-se na capital, onde começa a desenvolver os seus negócios, vendendo material de construção, num ambiente que, até há pouco tempo, descrevia como seguro e estável.
"A nossa situação em Moçambique era muito boa, o Governo sempre nos apoiou e vivíamos bem. As nossas crianças estudam. Mas há uma situação [de perseguição] que está a começar e nós não entendemos as suas causas", declarou Cleophas Habiyareme, que hoje preside à Associação dos Ruandeses Refugiados em Moçambique.
O receio de Habiyareme é resultado de casos de alegada perseguição a opositores e intelectuais exilados em vários países africanos pelo regime do atual Presidente ruandês, Paul Kagame, com destaque para o desaparecimento do jornalista Ntamuhanga Cassien, que residia na ilha de Inhaca, Maputo.
Cassien foi levado há duas semanas "por oito indivíduos desconhecidos que se apresentaram como agentes da Polícia da República de Moçambique [PRM]", num grupo que incluía outro cidadão do Ruanda "que se expressava na mesma língua local do visado", segundo a associação - que denunciou o caso.
Contactadas pela Lusa, as autoridades moçambicanas têm se demarcado desta detenção, e o advogado do jornalista não conseguiu ainda falar com ele, nem saber do seu paradeiro.
A Associação dos Ruandeses Refugiados em Moçambique, com o apoio do advogado, submeteu o caso à Procuradoria-Geral da República (PGR).
"Decidimos submeter o caso à PGR e o nosso advogado esteve lá. Esta é a maneira que nós temos de fazer pressão sobre as autoridades para que se localize o Ntamuhanga Cassien", declarou Cleophas.
Ntamuhanga Cassien, 37 anos, dizia-se vítima de perseguição política como outros críticos do regime do Presidente Paulo Kagame.
Fugiu da prisão no Ruanda em 2017, depois de ter sido condenado em 2015 a uma pena de 25 anos de prisão por conspiração contra o Estado, cumplicidade com terrorismo e homicídio - sentença na altura contestada por organizações internacionais de defesa de direitos humanos.
"Estamos a ficar preocupados com o que aconteceu com este jornalista e não entendemos as causas. Como nós, ele era refugiado, com todos os documentos. Ele foi capturado e até hoje não há uma explicação", realçou Habiyareme.
Revocat Karemangingo, outro refugiado ruandês a residir em Moçambique desde 1996, tem a mesma preocupação, principalmente porque "Cassien sempre se destacou nas iniciativas de reconciliação após o genocídio do Ruanda".
"Cassien foi jornalista da rádio cristã Amazing Grace e, juntamente com outros dois indivíduos, fez um trabalho para mudar os corações da população. Eles criavam debates e eram seguidos por muitas pessoas", explica Revocat, 52 anos.
Embora oficialmente a detenção do jornalista não tenha sido confirmada, para Revocat, caso Cassien apareça no Ruanda será "eliminado" porque tem "muito segredos" e considera que "não há justiça" naquele país.
"O Governo do Ruanda não quer críticas. Governos assim cometem muitos erros", realça.
Revocat, que hoje possui armazéns de venda de refrigerante e cervejas em Maputo e uma família de seis membros, tenta esquecer o que passou na longa caminhada até um lugar seguro, um percurso no qual o refugiado viu a mãe morrer após a explosão de uma bomba no Congo, durante um ataque das forças ruandesas a um campo de refugiados em 1994.
Revocat observa uma aproximação, nos últimos anos, entre os governos de Maputo e Kigali, com destaque para uma visita que o chefe de Estado moçambicano, Filipe Nyusi, realizou há poucas semanas ao Ruanda.
Mas, mesmo assim, acredita que a história de perseguição que os ruandeses viveram na Tanzânia e no Congo não se vai repetir em Moçambique, que conta com perto de 4.000 refugiados daquele país, segundo dados da associação.
Líder do Ruanda desde 1994, a Kagame é atribuído o desenvolvimento do país após o genocídio de tutsis daquele ano, mas o chefe de Estado é também acusado de limitar a liberdade de expressão e de reprimir a oposição.
A organização Human Rights Watch (HRW) acusou no final de março as autoridades ruandesas de estarem a limitar a população que recorre à Internet para se expressar no país, depois de restringirem a liberdade de expressão nos órgãos de comunicação social.
A restrição de liberdades tem também sido denunciada e condenada por outras organizações como a Repórteres sem Fronteiras e a União Europeia (UE).
O genocídio no Ruanda foi responsável pela morte de mais de 800.000 pessoas, principalmente da minoria tutsi, entre abril e julho de 1994.
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