"O momento é complexo na América Latina porque a pandemia da covid-19 está a ter um efeito devastador, tanto nos sistemas de saúde, com tantas vidas perdidas, como também na economia" da região, declarou à Lusa Jorge Quiroga, no âmbito do Best of Estoril Conferences, realizado em formato digital.
A América Latina e as Caraíbas totalizam 1.212.922 mortos e 35.127.289 casos do SARS-CoV-2. Entre os países mais duramente atingidos, o Peru é o que lamenta o maior número de mortos tendo em conta a população, com 573 mortos por cada 100 mil habitantes.
"Primeiro, pensava-se que somente os países com grandes populações seriam atingidos, como os Estados Unidos e países europeus. Aprendemos que as pandemias, como a criminalidade e o narcotráfico, não têm fronteiras, não têm passaporte, chegam simplesmente. Todos os mitos foram desfeitos, como [os que defendiam que a covid-19] não atingia jovens, entre outros. Afetou-nos a todos", sublinhou.
Segundo Quiroga, "países mais ricos, como os Estados Unidos, Japão e da União Europeia, fortaleceram os seus sistemas de saúde e, no campo económico, investiram grandes quantidades de dinheiro, 'vários biliões [de dólares, no caso dos EUA], ajudando empresas e pessoas, através de vários mecanismos que possuem para este fim".
"Mas, na América Latina, quem irá ajudar? Seria preciso ajuda externa. O Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a Corporação Andina de Fomento não tem fundos para fazer investimentos de 10%, 15% do Produto Interno Bruto (PIB) para salvar hotéis, cafés, restaurantes, desporto, teatros, todas as atividades muito atingidas pela pandemia do SARS-CoV-2", avaliou.
Segundo o ex-Presidente, sem estes recursos extraordinários, "as economias informais, que correspondem a 40%, 50%, 60% das populações na América Latina, que não tem um salário no fim do mês como nos Estados Unidos ou na Europa, perderam, de forma drástica, rendimentos", provocando enormes protestos por motivos económicos.
"Paradoxalmente, em países autoritários como a Venezuela e a Nicarágua, os protestos pela democracia foram desativados, porque as pessoas têm medo de sair [à rua] e ficarem serem infetadas", sublinhou.
O vice-Presidente referiu que nos países em que foram feitas quarentenas prolongadas, há protestos, nomeadamente dos jovens que não encontram lugar no mercado laboral.
"É preciso um programa de vacinas intenso e massivo, apoiado pelas Nações Unidas e pela comunidade internacional, e a injeção extraordinária de recursos. Um primeiro passo será a utilização de fundos do FMI para aliviar a situação na América Latina", disse.
"Os Estados Unidos e a Europa poderiam, dos enormes recursos que estão a capitalizar, destinar 2% desse montante ao Banco Interamericano de Desenvolvimento, para ajudar os países latino-americanos a lutar contra este efeito devastador da covid-19 na economia", referiu.
Para o antigo Presidente, se isso não acontecer, vão continuar a registarem-se enormes protestos e vão ficar mais claras as frustrações das populações, que já tinham chegado à classe média e, com o efeito recessivo provocado pela pandemia, retrocederam.
"As pessoas perderam familiares, os sistemas de saúde são deficitários, e ficaram sem emprego. Esta frustração vai continuar a sair às ruas", declarou.
Quiroga também sublinhou a falta de integração dos países latino-americanos, que, mesmo dividindo uma mesma matriz social, cultural e económica, mantêm-se afastados uns dos outros, mas que deveriam seguir o exemplo da União Europeia (UE), que apesar dos problemas, consegue responder melhor aos atuais desafios.
Neste momento de pandemia, vê-se isso claramente, segundo o antigo Presidente, visto que não houve qualquer movimentação dos latino-americanos para a obtenção de vacinas ou recursos para combater em conjunto os problemas gerados pelo SARS-CoV-2.
Jorge Quiroga foi vice-Presidente da Bolívia entre agosto de 1997 e agosto de 2001, durante o Governo do Presidente Hugo Banzer. Posteriormente, assumiu o cargo de chefe de Estado em agosto de 2001, depois da renúncia de Banzer por motivos de saúde, e permaneceu no cargo até agosto 2002.
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