Retirada do Afeganistão é como a "queda" do Vietname

O veterano norte-americano Roy Hibetts, da 82.ª Divisão Aerotransportada dos Estados Unidos - que cumpriu várias missões no Afeganistão - disse hoje à Lusa que se sente "como os soldados que combateram no Vietname", perante a retirada em curso. 

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Lusa
13/08/2021 14:58 ‧ 13/08/2021 por Lusa

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Roy Hibetts

 

"Tenho sentimentos múltiplos em relação ao que está a acontecer atualmente no Afeganistão. Por um lado há um sentimento de derrota mas, por outro lado, todos sabíamos o que ia passar-se e, por isso, fico triste sobretudo pela perda de tempo. Honestamente, sinto-me hoje como a maior parte dos veteranos da Guerra do Vietname. Fizemos tanto para acabarmos neste ponto. Eu sou apenas um soldado mas percebem o que eu quero dizer?", disse à Lusa Hibetts, que se reformou em 2019 com o posto de sargento.

A agência Lusa acompanhou em 2010 várias missões comandadas pelo sargento Roy Hibetts na região de Shewan, província de Farah, oeste do Afeganistão, perto da fronteira com o Irão, integrada no 73.º Regimento de Cavalaria da 82.ª Divisão Aerotransportada dos Estados Unidos.

 "Depois dessa missão em Shewan fomos para outras províncias e depois para Kandahar. Cumpri mais duas missões e após dois anos tornei-me instrutor no Estado do Louisiana, aqui nos Estados Unidos. Depois reformei-me, em 2019. Tenho 49 anos", explica o veterano que cumpriu missões militares em vários pontos da América do Sul, Coreia do Sul, Iraque e Afeganistão.

"Os meus camaradas também transmitem vários tipos de sentimentos sobre o que está a acontecer, uns dizem que fomos derrotados, outros que fomos lá e fizemos o nosso trabalho e depois viemos embora, ponto final. Eles que fiquem com o Afeganistão. Mesmo assim entre nós há um certo sentimento de tristeza sobre esta forma de retirada", disse.  

Para Hibetts, uma figura singular que em patrulhas por campos minados no Afeganistão contava que era "descendente de 'cowboys'" e que tinha crescido em selas de cavalos no Arizona diz que a retirada das forças norte-americanas é uma "questão orçamental" que já devia ter sido ponderada.  

"Nesta altura, o Exército do Afeganistão tenta sobreviver mas quanto à retirada dos Estados Unidos foi uma decisão política. Não me compete a mim responder pelas decisões dos generais do Pentágono sobre uma retirada tão rápida. Seja como for, isto ia acontecer mas creio que devia ter acontecido há dez anos. Enfim, aconteceu agora", desabafa lamentando a falta de interesse dos civis sobre uma guerra que durou duas décadas.

"A maior parte das pessoas aqui nos Estados Unidos nem sequer pensam no Afeganistão, nem sequer sabem onde fica o país e isso deixa-me perplexo. Há muita ignorância no que diz respeito à retirada das forças norte-americanas", critica o veterano norte-americano, que foi militar durante 20 anos.   

Roy Hibetts explica ainda que acompanha as notícias diariamente sobre a retirada dos Estados Unidos e refere que "neste momento" as forças talibãs estão a cercar as cidades "que lhes são estrategicamente importantes" e que "de um momento para o outro" vão dominar o país. 

"Só precisam de tempo. Aconteceu a mesma coisa nas guerras da Nicarágua ou em El Salvador. O mais duro para mim, além dos combates, é pensar nas pessoas que conheci no Afeganistão e que ficaram para trás e que não vão sobreviver ao avanço talibã", diz ainda o veterano de guerras em vários palcos de guerra.

"Bem-vindo à terra da gente perdida. Este lugar parece que não mudou muito desde os tempos de Alexandre o Grande. Os muros são os mesmos e as casas também. Até as pessoas. Olha para este cavalheiro. Esta gente não mudou em milhares de anos", dizia o sargento em maio de 2010, em passo de marcha, a meio de uma patrulha, enquanto passava por um homem que abria a porta da casa de terracota. 

"Gosto de estar aqui. É longe de tudo", dizia o sargento Hibbets, acrescentando que a papoila de ópio produzida em grandes quantidades na região de Shewan financiava o "inimigo" sendo, na altura, um dos problemas mais difíceis de resolver para as forças estrangeiras.

"A forma de esta gente ganhar dinheiro é através de tráfico da papoila de ópio e não se podem queimar as plantações e esperar que a população fique contente. Eles fazem isto há muito tempo mas eu sei que os talibãs usam a droga para financiarem a guerra", dizia Hibbets durante as patrulhas sob um sol abrasador.

Hoje, sobre a produção do ópio, cujas plantações vigiou durante vários anos, Hibetts diz simplesmente que o dinheiro é "mais forte" do que muitas outras coisas.

"Quanto à produção de ópio os talibãs vão tentar controlar as plantações, isso é evidente. O dinheiro fala mais alto", disse.

"Roy é o meu primeiro nome, como Roy Rodgers, o 'cowboy' que cantava aos índios. Eu também canto aos meus inimigos", disse uma vez o sargento com uma gargalhada, no fim de uma missão em que foram encontrados explosivos, munições e restos de minas terrestres de fabrico soviético: outro império que também passou pelo Afeganistão.

"Como civil já não sou um 'cowboy', deixei de montar a cavalo, só aos fins de semana. Estou a receber formação para ser piloto de aviões de carga. Ainda estou a treinar mas adoro", diz Hibetts antes de mais um voo nos céus do Arizona, Estados Unidos.

Leia Também: Major-general alerta que opinião pública foi enganada sobre o Afeganistão

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