"As declarações de que a Rússia não pode cumprir as suas obrigações relativamente à sua dívida pública não correspondem à realidade", insistiu o Ministério das Finanças russo, antes de acrescentar que "o congelamento das contas em moeda estrangeira do Banco da Rússia e do Governo pode ser visto como o desejo de países estrangeiros de provocar um incumprimento artificial".
Para a Rússia, é uma questão de honra e não apenas a questão do seu futuro acesso aos mercados financeiros. Durante duas décadas, e especialmente desde a crise de 2014, Moscovo trabalhou de facto para construir uma saúde financeira irrepreensível, com um rácio de dívida muito baixo e mais de 600 mil milhões de dólares em reservas acumuladas através de receitas de petróleo.
Mas agora, como retaliação à intervenção militar russa na Ucrânia, a parte das reservas detidas no estrangeiro, cerca de 300 mil milhões de dólares, tornou-se o calcanhar de Aquiles da fortaleza económica russa: estão congeladas como parte das sanções ocidentais, desafiando a Rússia a cumprir vários prazos de pagamento da dívida em moeda estrangeira durante março e abril.
Embora as euro-obrigações emitidos desde 2018 possam ser reembolsados em rublos, tal não é o caso do primeiro vencimento, que ocorre já na próxima quarta-feira, com um reembolso de 117 milhões de dólares.
"Esta é uma situação única em que a parte que impõe as sanções decidirá sobre um incumprimento russo em 2022", afirmou hoje Elina Ribakova, economista chefe adjunta do Instituto Internacional de Finanças (IIF), citada pela Afp.
Ribakova observa que "a menos que o Tesouro dos EUA permita que alguns dos 300 mil milhões de dólares em ativos congelados da Rússia sejam libertados para pagar menos de 20 mil milhões de dólares em participações estrangeiras de euro-obrigações russas, veremos provavelmente um incumprimento.
As sanções ocidentais paralisaram parte do sistema bancário e financeiro da Rússia e causaram o colapso do rublo. Um incumprimento corta automaticamente um Estado dos mercados financeiros e compromete o seu retorno durante anos.
Após o colapso da URSS, só a Rússia herdou os 70 mil milhões de dólares em dívida do império desaparecido e foi preciso mais de um quarto de século para se livrar deste fardo.
A dolorosa e caótica década de 1990 culminou num humilhante incumprimento da dívida em 1998, quando a economia russa foi enfraquecida, entre outras coisas, por uma crise financeira na Ásia e pelo custo colossal da primeira guerra chechena.
Foram necessários 12 anos até que a Rússia pudesse voltar a contrair empréstimos nos mercados internacionais, com uma nova emissão de obrigações em 2011.
No início dos anos 2000, o país beneficiou de um afluxo de petrodólares graças ao aumento dos preços do petróleo e do gás, o que lhe permitiu acumular reservas e virar definitivamente a página da dívida soviética com os últimos reembolsos em 2017.
A Rússia tinha feito questão de reconstruir uma reputação de mutuário limpo, esforços que correm o risco de ser despedaçados.
"A Rússia tem o dinheiro para pagar a sua dívida, mas não tem acesso ao mesmo. O que mais me preocupa é que haverá consequências para além da Ucrânia e da Rússia", disse a chefe do FMI, Kristalina Georgieva, numa entrevista com a CBS no domingo.
Embora tenha excluído a possibilidade de uma crise financeira global, Georgieva salientou que o aumento dos preços dos alimentos e da energia provocado pela crise poderia levar à fome, particularmente em África.
Além dos efeitos económicos sobre as populações russa e ucraniana, algumas das quais são suscetíveis de mergulhar na pobreza, bem como sobre os países vizinhos.
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