Primeiro jornalista da AFP a entrar em Bucha relata cenário de massacre

Danny Kemp fez parte da equipa que registou as primeiras imagens do que se passou na cidade ucraniana, onde foram descobertos centenas de cadáveres de civis.

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Teresa Banha
19/04/2022 09:51 ‧ 19/04/2022 por Teresa Banha

Mundo

Rússia/Ucrânia

Pouco mais de duas semanas depois de as tropas russas abandonarem Bucha, a cidade ucraniana onde foram descobertos centenas de cadáveres de civis, um dos primeiro jornalistas a chegar ao local relatou como foi encontrar a cidade com aquilo a que se pode chamar um cemitério a céu aberto.

"'Cadáveres', alguém disse no carro", começa por contar o jornalista da AFP, acrescentando que, inicialmente, a sua equipa viu três cadáveres, um deles no meio do chão com as mãos atadas atrás das costas, uma das imagens que marca o massacre do local e também é um dos indícios de que civis foram torturados antes de serem mortos.

Danny Kemp relata que demorou algum tempo até que ele, ou algum dos cinco membros da sua equipa olhasse para o resto da rua. "Quando olhámos, percebemos que aqueles três cadáveres eram apenas o início. Por aqui e por ali, para além daquilo que os nossos olhos podem alcançar em qualquer direção, havia mais e mais [...]".

O que nós não sabíamos era que nas próximas 24 horas, as imagens e texto que iríamos reproduzir iam incendiar um repúdio internacional contra a Rússia

Apesar do "choque inicial" e da sensação de que "aquele cenário horrível" não poderia ser real, Kemp começou a trabalhar acompanhado pelos seus colegas, o fotógrafo Ronaldo Schemidt e o jornalista Nicolas Garcia. "Sabíamos que como jornalistas tínhamos que mostrar o que se passava ao mundo, e rapidamente", contou, explicando que todos sabiam que as imagens poderiam vir a ser utilizadas como provas de crimes de guerra, assim como "as campanhas de desinformação" podiam surgir.

"O que nós não sabíamos era que nas próximas 24 horas, as imagens e texto que iríamos reproduzir iam incendiar um repúdio internacional contra a Rússia", com o agravamento de sanções, assim como uma nova fase em que o termo "genocídio" começou a pairar, sendo hoje das questões levantadas pelos especialistas e líderes mundiais. Pode ou não usar-se o termo, como Joe Biden foi pioneiro, ou deverá esperar-se até que os crimes de guerra sejam provados?

Depois de terem encontrado "histórias de sobrevivência", de que dá exemplo um grupo de idosos que sobreviveram sem comida, eletricidade ou água potável, o grupo começou a avançar para além da rua inicial. "E o clima tornou-se mais negro. Um residente de olhar desvairado que devorara um cigarro mostrou-nos a sepultura à superfície de quatro pessoas que teriam sido mortas pelos russos, e enterradas no quintal dos vizinhos, e sobre as quais estava uma cruz de madeira verde".

"O homem que nos mostrou as sepulturas ofereceu-se para ser o nosso guia. Por norma, estas ofertas não levam a lado nenhum, mas esta valeu a pena", explicou.

"A cara do primeiro cadáver, um homem de casaco castanho e de jeans, estava tão branca e tinha um aspeto tão encerado que quase parecia surreal. Foram as suas mãos atadas atrás das costas com um pano branco que me trouxeram a realidade da sua morte: a pele enrugada e as unhas descoloradas", contou num relato à AFP, explicando que o corpo se encontrava junto a outros, inclusive junto a outro cadáver que tinhas as calças subidas acima do tornozelo e que "mostrava a pele arroxeada".

Acompanhado pelos dois colegas da AFP, por um motorista, um fixer (jornalista local) e um segurança, Danny Kemp já tentava entrar na cidade há dias, sendo impedido em várias localidades nos pontos de controlo. Segundo conta, era mais difícil entrar nas localidades próximas de Irpin desde a morte do jornalista a da Fox News Brett Renaud, a 13 de março.

"Desde os postos de controlo que conseguíamos ouvir o barulho constante dos bombardeamentos e perguntávamo-nos sobre como estariam as pessoas dentro da cidades", conta.

Já em Bucha, e quando se deparou com os primeiros cadáveres com indícios de tortura, uma sensação de que algo estava errado invadiu-o. "Primeiro, pareceu-me, de alguma forma, errado olhar tão de perto para uma pessoa que não tinha forma de dizer que não queria ser observada tão de perto", confessou,  explicando que, por outro lado, não haveria forma de descobrir como eles tinham morrido e quem eles eram se não fossem observados dessa forma. "Estas pessoas - para que se torne claro - usavam todas roupas de civis", lembra.

Pareceu-me, de alguma forma, errado olhar tão de perto para uma pessoa que não tinha forma de dizer que não queria ser observada tão de perto",

"Todos pareciam ter sido homens adultos, mas com idades variadas. E todos pareciam estar mortos há algum tempo. Todos tinham a pele chupada e amarelada, assim como os dedos estavam rígidos. Nunca tinha visto muitos cadáveres antes desse dia, mas poucos dos que tinham visto estavam assim há pouco tempo, e não pareciam como estes", conta.

O jornalista explica ainda que percorreu a rua, pelo menos duas vezes, para fazer um registo do número de mortos. "Mas eram tantos que eu perdia a conta, e numa das vezes descobri um corpo que ainda não tinha visto". "Por fim, tive que tirar fotografias com o meu telemóvel para ter a certeza que tinha o número certo. À terceira, tive a certeza: 20 cadáveres", contou, explicando que também para os dois colegas que o acompanharam estar naquela rua cinzenta e gelada foi difícil.

"Quem eram aquelas pessoas que estavam estendidas em diferentes posições no asfalto? Quem era aquele homem de idade cuja cabeça estava encostada no passeio amarelo e branco,  de olhos fechados e pernas cruzadas, quase como se estivesse a dormir a sesta? E aqueles dois homens que estavam lado a lado numa poça, com os olhos abertos e parecer que miravam o céu - eram amigos ou da mesma família? E o homem com as mãos nos bolsos? Estaria ele a agarrar nalguma coisa quando morreu?", questionou-se.

Noutro grupo de corpos, havia alguns que tinham sido gravemente feridos na cabeça, assim como um deles estava também de mãos atadas. "Por que razão apenas um deles tinha as mãos atadas enquanto os outros aparentemente tinham sido mortos enquanto faziam a sua vida normal"?, questionou-se, explicando que três corpos estavam caídos sobre as bicicletas, e que um deles tinha mesmo o pé ainda no pedal.

Depois de Bucha, várias cenários semelhantes surgiram na Ucrânia, com a vice-primeira-ministra da Ucrânia a sugerir que cenários como na cidade de Borodyanka poderiam haver ainda cenários 'piores'.

A Rússia lançou em 24 de fevereiro uma ofensiva militar na Ucrânia que já matou quase dois mil civis, segundo dados da ONU, que alerta para a probabilidade de o número real ser muito maior.

A guerra causou a fuga de mais de 11 milhões de pessoas, mais de cinco milhões das quais para os países vizinhos.

A invasão russa foi condenada pela generalidade da comunidade internacional, que respondeu com o envio de armamento para a Ucrânia e o reforço de sanções económicas e políticas a Moscovo.

Leia Também: Rússia confirma ataques aéreos e de artilharia contra o leste ucraniano

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