O flagelo histórico cometido pelo regime estalinista na Ucrânia soviética, também designado como "A Grande Fome" ou "A Fome-Terror", fez, entre 1932 e 1933, cerca de 3,5 milhões de vítimas ucranianas -- aliás "Holodomor" significa em ucraniano isso mesmo: exterminação pela fome.
A Roménia, a Irlanda, a Alemanha e o Vaticano foram, até agora, alguns dos países que atribuíram ao crime da era soviética a classificação que a Ucrânia vinha pedindo há anos e que adquiriu uma nova atualidade desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, a 24 de fevereiro deste ano, e durante alguns meses bloqueou a saída de cargueiros com cereais dos portos ucranianos, fazendo temer uma crise alimentar mundial.
Na quarta-feira, o parlamento romeno aprovou um texto classificando o "Holodomor" como um "crime contra a Humanidade" e, na quinta-feira, foi a vez de o Senado irlandês aprovar uma resolução considerando-o um "genocídio do povo ucraniano".
No mesmo dia, também o Papa Francisco falou sobre o assunto no Vaticano, utilizando o termo "genocídio": "Rezamos pelas vítimas desse genocídio e por tantos ucranianos -- crianças, mulheres, pessoas idosas e bebés -- que agora sofrem o martírio da agressão".
Na sexta-feira, foi a vez de o parlamento alemão anunciar que na próxima semana vai definir como "genocídio" essa "Fome-Terror" imposta há 90 anos ao povo ucraniano pelo regime de Estaline.
Será com uma unanimidade rara que a coligação no poder, formada pelo Partido Social-Democrata (SPD), pelos Verdes e os liberais do FDP, à qual se juntará a oposição conservadora do bloco CDU-CSU, formado pela União Democrata-Cristã e a União Social-Cristã bávara, vai aprovar na próxima quarta-feira, 30 de novembro, uma resolução nesse sentido no Bundestag, a câmara baixa do parlamento alemão.
"Todos os grupos parlamentares democráticos alemães chegaram a acordo sobre uma importante moção conjunta sobre o 'Holodomor'", reagiu de imediato na rede social Twitter o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, expressando a sua "gratidão por ver homenageado o povo ucraniano".
Esta fome inscreve-se "na lista dos crimes desumanos cometidos por sistemas totalitários que fizeram desaparecer milhões de vidas humanas na Europa, em particular na primeira metade do século XX", lê-se no projeto de resolução, citado pela agência de notícias francesa AFP.
Este crime "faz parte da nossa história comum enquanto europeus; foi toda a Ucrânia que foi atingida pela fome e pela repressão, e não só as suas regiões produtoras de cereais", sublinha o texto.
"Da perspetiva atual, é evidente que se trata de um genocídio no plano histórico e político", acrescenta.
O Bundestag "retira do próprio passado da Alemanha uma responsabilidade especial, a de identificar e de agir contra crimes contra a humanidade na comunidade internacional", explica-se ainda no documento.
Esta classificação do "Holodomor" como "genocídio" - um conceito cunhado na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) com o Holocausto - o assassínio em massa de milhões de judeus, além de homossexuais, ciganos, testemunhas de Jeová e outras minorias, a partir de um programa de extermínio sistemático criado pelo regime nazi de Adolf Hitler -- ganhou agora um novo significado, perante a guerra russa na Ucrânia, que já dura há nove meses e fez um número ainda indeterminado de mortos e feridos, além de milhões de deslocados internos e refugiados noutros países europeus.
"Mais uma vez, a violência e o terrorismo estão a privar a Ucrânia do que é fundamental para a sua sobrevivência e a subjugar todo o país", observou o deputado ecologista Robin Wagener, um dos redatores do texto, considerando que classificar o "Holodomor" como "genocídio" é um "aviso" a Moscovo, cuja ação na Ucrânia poderá conduzir a uma nova fome.
Segundo Wagener, o Presidente russo, Vladimir Putin, "inscreve-se na cruel e criminosa tradição de Estaline".
O chanceler alemão, Olaf Scholz, e a sua chefe da diplomacia, a ecologista Annalena Baerbock, declararam também na sexta-feira apoiar a classificação do "Holodomor" como genocídio, segundo os respetivos porta-vozes.
Em mais um exemplo de revisionismo da história, a Rússia rejeita categoricamente tal classificação, argumentando que a grande fome que abalou a União Soviética nos anos 1930 não fez só vítimas ucranianas, mas também russas, cazaques, alemãs do Volga e membros de outros povos.
"No início dos anos 1980, representantes soviéticos ainda negavam o 'Holodomor' na Assembleia-Geral das Nações Unidas", recorda o texto da resolução alemã, lamentando que tenham sido "necessárias décadas para que os dirigentes soviéticos, sob a liderança de Mikhaïl Gorbatchev, reconhecessem que tinha havido uma 'fome'" na Ucrânia.
A política levada a cabo por Putin, marcada, em 2021, pelo encerramento da organização Memorial, que documentava os crimes do estalinismo e recebeu, depois, o Prémio Nobel da Paz, sublinha a esse propósito "a ideologização revisionista" atual da história russa, critica o texto que será aprovado na próxima quarta-feira no Bundestag.
Até hoje, o "Holodomor" continua a dividir opiniões de historiadores e do público, entre os que o rotulam como genocídio e traçam paralelos com o Holocausto e outros que rejeitam essa classificação e consideram a comparação inadequada, embora reconheçam a dimensão humana da tragédia, por questionarem se a grande fome foi uma política de extermínio deliberadamente concebida por Estaline ou uma consequência imprevista da industrialização soviética.
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