"Desde o início dos protestos maciços nas distintas regiões do país em dezembro de 2022, o Exército e a Polícia Nacional do Peru (PNP) dispararam de forma ilegítima armas letais e utilizaram outras armas menos letais de forma indiscriminada contra a população, especialmente contra pessoas indígenas e camponesas, no contexto da repressão dos protestos, constituindo ataques generalizados", disse a AI ao apresentar hoje em Lima as revelações iniciais da sua investigação no país.
No decurso da investigação que decorreu nas regiões de Ayacucho, Andahuaylas, Chincheros e Lima entre 29 de janeiro e 11 de fevereiro a organização não-governamental (ONG) de direitos humanos recebeu informações de 46 casos de possíveis violações de direitos humanos e documentou 12 casos de mortes por uso de armas de fogo, apesar de sublinhar que os protestos foram na generalidade pacíficos.
De acordo com diversas fontes, até ao momento foram mortas pelo menos 60 pessoas nos protestos que têm decorrido no Peru na sequência da destituição pelo Congresso e detenção do ex-presidente Pedro Castillo, acusado de tentativa de golpe de Estado por pretender dissolver o parlamento e governar por decreto.
A AI também recolheu informações sobre graves falhas na investigação de violações dos direitos humanos e na atividade da justiça.
"Com um rescaldo de 48 pessoas mortas pela repressão estatal, 11 em bloqueios de estradas e um polícia, assim como centenas de pessoas feridas num trágico período de violência estatal, as autoridades peruanas permitiram que, durante mais de dois meses, o uso excessivo e letal da força tenha sido a única resposta do Governo ao clamor social de milhares de comunidades que hoje exigem dignidade e um sistema político que garanta os seus direitos humanos", indicou Erika Guevara Rosas, diretora para as Américas da Amnistia Internacional e citada no comunicado.
Num relatório que se baseou nos dados da Procuradoria do Povo do Peru (Defensoría del Pueblo de Peru), a AI assinala que num contexto de grande incerteza política, os primeiros sinais de mal-estar social surgiram nas regiões mais marginalizadas do Peru, em particular Apurímac, Ayacucho e Puno, com populações maioritariamente indígenas historicamente alvo de discriminação e desigualdade.
"Foi registado que o número possível de mortes arbitrárias pela repressão estatal se concentrou de forma desproporcional nas regiões com população maioritariamente de povos indígenas. Apesar de o nível de violência estatal durante as manifestações ter sido praticamente igual ao registado em outras regiões, como por exemplo Lima", prossegue o texto.
"Enquanto os departamentos [províncias] com população maioritariamente indígena apenas representam 13% da população total do Peru [cerca de 34 milhões], estes concentram 80% das mortes totais registadas desde o início da crise".
No decurso dos protestos foi exigida a demissão de Dina Boluarte, vice-presidente de Castillo e que lhe sucedeu na presidência, a antecipação das eleições - já recusada pelo Congresso dominado por formações de direita - e ainda a formação de uma assembleia constituinte, a libertação de Castillo (de origem indígena), a reforma do sistema judicial e justiça para as vítimas dos protestos.
A AI, e na sequência de uma ampla recolha de testemunhos que inclui fotos e vídeos, afirma ter provas evidentes de que as autoridades atuaram "com um assinalável preconceito racista" dirigido às populações historicamente discriminadas. Assinala ainda que o Governo de Boluarte decretou o estado de emergência em sete regiões, com Puno (no sul) a permanecer sob controlo militar.
"Não foi por acaso que dezenas de pessoas disseram à Amnistia Internacional que sentiram que as autoridades as tratavam como animais e não como seres humanos. O racismo sistémico arreigado na sociedade peruana e nas suas autoridades durante décadas, foi o motor da violência exercida como castigo contra as comunidades que levantaram a sua voz", assinalou Erika Guevara.
Mortes arbitrárias e possíveis execuções extrajudiciais, lesões à integridade física e estigmatização dos manifestantes, praticamente sem acesso à justiça constituem outras conclusões deste primeiro relatório, e quando as investigações vão prosseguir noutras regiões do país andino.
Na parte final deste primeiro relatório, e na sequência da reunião da delegação da AI com a Presidente Boluarte na quarta-feira, a organização de direitos humanos emite um conjunto de recomendações preliminares "que devem ser imediatamente implementadas e com um foco antirracista".
Desta forma, a ONG aponta cinco medidas: alteração das táticas da gestão de manifestações; investigação urgente da procuradoria sobre os eventuais responsáveis pelas violações de direitos humanos; medidas urgentes das autoridades, incluindo a Presidente do Peru, para pôr termo à estigmatização contra as pessoas que se manifestam; apoio urgente às famílias das pessoas falecidas e feridas, incluindo apoio psicológico; e medidas oportunas e urgentes da comunidade internacional aos mecanismos de proteção dos direitos humanos para garantir o fim da repressão e a "prestação de contas" por parte das autoridades peruanas.
"A grave crise de direitos humanos que o país enfrenta foi alimentada pela estigmatização, a criminalização e o racismo contra a comunidade de povos indígenas e camponeses que hoje ocupam as ruas exercendo os seus direitos e a liberdade de expressão e reunião pacífica, e como resposta foram violentamente castigadas. Os ataques generalizados contra a população tem consequências de responsabilidade criminal individual das autoridades, incluindo ao mais alto nível, pela sua ação e omissão de pôr termo à repressão", disse Erika Guevara Rosas.
"Reiteramos o nosso apelo à Presidente interina Dina Boluarte e às restantes autoridades do Estado para terminarem com a repressão, atenderem aos pedidos legítimos de quem protesta e garantir que o Estado cumpra a sua obrigação de investigar todas as violações dos direitos humanos cometidas pelas forças de segurança e fazer comparecer os responsáveis perante a justiça", adiantou.
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