Política e religião na união 'sagrada' de Erdogan com o 'seu' povo
Com uma mensagem centrada na defesa da união da Turquia, bandeira, pátria e Estado, o Presidente recandidato Recep Tayyip Erdogan foi hoje de novo recebido em apoteose num comício num bastião do seu partido, nos arredores de Ancara.
© REUTERS/Bernadett Szabo
Mundo Turquia
Na reta final para as eleições de domingo, Erdogan optou hoje por uma deslocação a uma região onde está confortável. Milhares de pessoas - 40.000 segundo os organizadores - esperaram pelo seu líder na praça principal da localidade de Pursaklar, a cerca de 30 quilómetros de Ancara e engalanada com papeletas das cores do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) - laranja, azul e branco - presas a fitas que confluíam para o centro do recinto, sugerindo uma tenda de circo a céu aberto.
As forças policiais e militares, com forte aparato, montaram um enorme perímetro de segurança em torno da praça, onde também sobressaíam num amplo painel colorido, lado a lado, as efígies de Erdogan e Mustafa Kemal, o fundador da República da Turquia.
A entrada no recinto, dominado pela mesquita Hicret Camii, estava barrada por um cordão policial que revistava todos os participantes masculinos. A maioria das mulheres usa vestes compridas que lhe cobrem quase todo corpo, calças, além do véu islâmico. Algumas, muitas delas jovens, estão totalmente vestidas de negro.
Muitos dos apoiantes chegam em camionetas, e os trajes dos homens são modestos. A "Turquia profunda", pobre e religiosa, veio saudar Erdogan, o seu líder e salvador.
Montados junto ao palco, frente à mesquita, estão dois grandes ecrãs e uma potente aparelhagem de som, suspensa por duas gruas. Agitam-se em uníssono bandeiras da Turquia, outras azuis e brancas com o emblema do partido, uma lâmpada de onde irradiam sete feixes de luz.
Erdogan chega com mais de uma hora de atraso, mas o ambiente já lhe era favorável, após vários discursos e alguma música tradicional turca.
"Estou aqui pelo comício de Erdogan. Estou com ele, é um bom homem e vou votar nele e no partido", diz Nerzot, 47 anos, técnico de eletricidade, com um terço muçulmano na mão, que habita numa rua próxima e preferiu não atravessar os gradeamentos policiais.
"Fez muitas coisas, todo o mundo sabe o que [Erdogan] fez pela Turquia. Vamos ganhar as eleições, vejam a multidão. Kemal Kiliçdaroglu perdeu as eleições nos últimos 13 anos e ainda não aprendeu a lição", sugere Nerzot numa referência ao candidato apoiado por diversas e heterogéneas coligações da oposição e um sério desafio à renovação de um terceiro mandato por Erdogan.
Mesmo ao lado, em atitude discreta, Selfet, 25 anos, justificou a presença "para ouvir o discurso de Erdogan" mas diz não apoiar o AKP.
"Espero que Erdogan perca, e vai perder. É por isso que sente necessidade de comparecer nestes comícios. Kiliçdaroglu vai ganhar", disse com convicção, numa referência ao escrutínio presidencial do próximo domingo, a par das eleições legislativas.
Em timbre pausado, o Presidente da Turquia galvaniza a multidão, que também o escuta nas janelas e varandas que circundam a praça da mesquita. Em alguns telhados, num minarete, atiradores especiais da polícia estão de vigia, enquanto um veículo blindado armado se desloca para local mais estratégico.
Frente ao palco, mas do lado oposto, estão duas amigas, Duygu e Rumeysa, a primeira com o cabelo escuro com tiras esverdeadas, a segunda com um rígido lenço islâmico negro. Têm 18 anos e vieram apoiar Erdogan.
"No início foi muito bom, na segunda parte a economia caiu... queremos que o regime prossiga, não queremos regredir. Mas não critico a oposição, sabemos que a situação dos jovens não é esperançosa", diz Duygu, ao recordar-se do mandato de Erdogan como primeiro-ministro entre 2003 e 2014, desde então chefe de Estado.
Uma música tradicional que Erdogan parece acompanhar através do seu microfone, é entoada em delírio.
"Não permitiremos que ninguém divida este país. Eles estão com medo das assembleias de voto", assegura, numa referência à oposição.
O discurso é interrompido com um vídeo sobre os progressos do país: novos armamentos, gasodutos, habitações, estradas, fábricas, satélites, com um galvanizado locutor. Agitam-se milhares de bandeiras.
"Por vós, pelos vossos filhos, votem e controlem as assembleias de voto", apela. De seguida outro vídeo, dedicado ao candidato presidencial da oposição, acusado de pretender dividir o país e com alguns cartazes a ridicularizá-lo.
No centro do recinto a atmosfera é mais tensa. Um participante interroga-se da presença de um estrangeiro, de um europeu, de um "infiel", tenta espreitar o caderno de apontamentos, fotografa. Retirada, e problema talvez sanado.
Mais à frente estão quatro mulheres junto ao gradeamento, todas com lenço, a mais nova coberta de tecido negro onde desponta uma alva face. Uma usa um 'pin' com a bandeira turca e segura duas bandeiras do AKP. Outra tem uma faixa vermelha à roda da cabeça com o nome do Presidente turco.
"Toda a gente ama Erdogan, até à morte. É o líder do mundo, em 20 anos fez mais pela Turquia que nos 100 anos anteriores, nos hospitais, na Defesa...", diz a mulher que segura as bandeiras, de meia-idade e a bater a mão junto ao coração. Diversos populares escutam-na e por vezes emitem um olhar apreensivo.
"Por ter sempre usado lenço não pude frequentar a universidade", denuncia, numa referência ao período político dominado pelo Partido Republicano do Povo (CHP), a formação secular liderada por Kiliçdaroglu, que proibia o uso do véu nas instituições publicas.
"Mato-me por ele. Gosto mais dele que de minha mãe e meu pai. Estamos prontos a morrer por Erdogan!", remata.
"Todos o amamos, e todos os países têm inveja dele, incluindo Biden e os lideres europeus", acrescenta a mulher com a faixa na testa. "E Kiliçdaroglu colabora com o partido curdo, apoia grupos terroristas...".
Pedem para ser fotografadas, com as bandeiras em riste e amplos sorrisos, antes da despedida. Mais à frente, regressam. Tiram uma fotografia e dizem ter receios dos "espiões".
O comício prolongou-se por 45 minutos. Erdogan despede-se com uma frase cáustica dirigida a Muharrem Ince, que derrotou nas presidenciais de 2018 e que hoje anunciou a desistência da candidatura, um benefício para o seu antigo companheiro de partido Kiliçdaroglu: "Ince, porque não te reformas?".
Numa escada, dois homens ainda erguem um cartaz de madeira. "300 mil milhões dólares para enfrentar a crise financeira. O nosso país não está à venda". A referência a um eventual empréstimo de instituições financeiras internacionais que tem sido rejeitado pelo poder de Ancara.
Na tarde de quinta-feira em Pursaklar, houve uma "Turquia profunda" que desceu à rua para idolatrar o seu líder eterno.
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