Rússia suspendeu acordo dos cereais. Mas que importância tem no mundo?

A Rússia suspendeu hoje o acordo de exportação de cereais pelo Mar Negro para várias regiões do mundo onde milhões de pessoas passam fome, argumentando que os compromissos assumidos em relação à parte russa não foram cumpridos.

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Lusa
17/07/2023 20:55 ‧ 17/07/2023 por Lusa

Mundo

Guerra na Ucrânia

A Iniciativa de Cereais do Mar Negro, mediada pela ONU e pela Turquia, permitiu que 32,9 milhões de toneladas métricas (36,2 milhões de toneladas) de alimentos fossem exportados da Ucrânia desde agosto, mais de metade para países em desenvolvimento, de acordo com o Centro de Coordenação Conjunto em Istambul.

Na semana passada, o economista-chefe da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Maximo Torero, alertou que o fim do acordo significaria "um novo pico" nos preços dos alimentos, embora não seja claro quanto tempo irá durar.

Alguns analistas não preveem um aumento duradouro do custo de produtos como o trigo, porque há cereais suficientes para todos no mundo. Mas muitos países já se debatem com preços elevados dos alimentos a nível local, que estão a contribuir para alimentar a fome.

Segue-se uma análise do acordo e do significado da sua suspensão.

O que é o acordo sobre os cereais?

A Ucrânia e a Rússia assinaram acordos separados em julho de 2022, um dos quais reabriu três portos ucranianos do Mar Negro que estiveram bloqueados durante meses após a invasão de Moscovo. O outro facilitou o movimento de alimentos e fertilizantes russos em plenas sanções ocidentais.

Ambos os países são grandes fornecedores de trigo, cevada, óleo de girassol e outros produtos alimentares a preços acessíveis de que dependem a África, o Médio Oriente e partes da Ásia. A Ucrânia é também um grande exportador de milho e a Rússia de fertilizantes - outras partes essenciais da cadeia alimentar.

A interrupção dos carregamentos da Ucrânia, país considerado o "celeiro", exacerbou uma crise alimentar global e fez disparar os preços dos cereais em todo o mundo.

O acordo garante que os navios não serão atacados à entrada e à saída dos portos ucranianos. Os navios são controlados por funcionários russos, ucranianos, da ONU e turcos para garantir que transportam apenas alimentos.

O acordo, que deveria ser prorrogado de quatro em quatro meses, foi saudado como um farol de esperança e foi renovado três vezes - as duas últimas por apenas dois meses, uma vez que a Rússia insistiu que as suas exportações estavam a ser travadas, apesar de Moscovo ter enviado quantidades recorde de trigo.

Desde 27 de junho que não há novos navios a aderir à iniciativa e a Ucrânia culpa Moscovo. O último navio deixou a Ucrânia no domingo.

O que é que já se conseguiu?

O acordo ajudou a baixar os preços globais de produtos alimentares, como o trigo, que atingiram níveis recorde após a invasão da Ucrânia pela Rússia, a 24 de fevereiro de 2022.

Após o acordo sobre os cereais, o Programa Alimentar Mundial (PAM) voltou a ser um dos principais fornecedores, permitindo que 725.000 toneladas de ajuda alimentar humanitária deixassem a Ucrânia e chegassem a países à beira da fome, incluindo a Etiópia, o Afeganistão e o Iémen.

"É um fenómeno único ter duas partes beligerantes e dois intermediários que concordam em estabelecer este tipo de corredor para levar produtos humanitários - que é ostensivamente o que se trata - para os mercados que mais precisam", disse John Stawpert, gestor sénior de ambiente e comércio da Câmara Internacional de Navegação, que representa 80% da frota comercial mundial.

Depois de a Rússia ter abandonado o acordo, os preços do trigo no comércio de Chicago subiram hoje cerca de 3%, para 6,81 dólares por 'bushel' (27,21 quilogramas).

Porque é que a Rússia pôs termo ao acordo?

A Rússia afirmou que pretende pôr termo às sanções impostas ao Banco Agrícola Russo e às restrições em matéria de transporte marítimo e de seguros que, segundo Moscovo, têm prejudicado as suas exportações agrícolas.

Algumas empresas têm receado fazer negócios com a Rússia devido às sanções, mas os aliados ocidentais garantiram que os alimentos e os fertilizantes estão isentos.

"Não é raro, em situações como esta, os países utilizarem todas as alavancas que têm para tentar alterar os regimes de sanções", disse Simon Evenett, professor de comércio internacional e desenvolvimento económico na Universidade de Saint Gallen, na Suíça

A Rússia também se queixou de que o compromisso de canalizar o seu amoníaco, um componente essencial do fertilizante, para um porto ucraniano para ser exportado nunca foi cumprido no âmbito do acordo. É verdade, mas a ONU afirma que o oleoduto foi danificado durante os combates.

"Lamentavelmente, a parte dos acordos do Mar Negro relacionada com a Rússia não foi cumprida", disse hoje o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov.

Na semana passada, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, enviou uma carta ao Presidente russo, Vladimir Putin, propondo facilitar as transações através do banco agrícola.

As "alegações russas de que o sector agrícola está a sofrer são contrariadas pela realidade" de que a produção e as exportações aumentaram desde antes da guerra, disse Caitlin Welsh, diretora do Programa Global de Segurança Alimentar e Hídrica do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.

A Rússia exportou um recorde de 45,5 milhões de toneladas métricas de trigo no ano comercial de 2022-2023, com outro recorde histórico de 47,5 milhões de toneladas métricas esperado em 2023-2024, segundo estimativas do Departamento de Agricultura norte-americano.

Quem é afetado?

O Comité Internacional de Resgate considera o acordo sobre os cereais uma "tábua de salvação para os 79 países e 349 milhões de pessoas na linha da frente da insegurança alimentar".

"É fundamental que o acordo seja prorrogado por um prazo mais longo para criar alguma previsibilidade e estabilidade", disse Shashwat Saraf, diretor regional de emergência do grupo para a África Oriental, que tem assistido a secas severas e inundações que destroem as colheitas.

Embora os preços globais dos cereais possam estabilizar, os países que dependem de alimentos importados, do Líbano ao Egito, podem ver os seus custos aumentar durante algum tempo se tiverem de encontrar fornecedores mais distantes, dizem os analistas.

Isto irá agravar os custos para os países que também viram as suas moedas enfraquecer e os níveis de dívida aumentar, porque pagam os carregamentos de alimentos em dólares.

Para os países e pessoas com baixos rendimentos, os alimentos "serão menos acessíveis", disse o economista-chefe do Programa Alimentar Mundial (PAM), Arif Hussain, aos jornalistas na semana passada.

E a Ucrânia?

A economia da Ucrânia depende da agricultura e, antes da guerra, 75% das suas exportações de cereais passavam pelo Mar Negro.

A Ucrânia pode enviar os seus alimentos por via terrestre ou fluvial através da Europa, mas estas rotas têm capacidade para transportar quantidades inferiores às do transporte marítimo e a sua utilização tem provocado a ira dos países vizinhos.

No entanto, a Associação Ucraniana de Cereais quer enviar mais cereais através do rio Danúbio para os portos do Mar Negro da vizinha Roménia, afirmando que é possível duplicar as exportações mensais por essa via para quatro milhões de toneladas métricas.

Os embarques de trigo da Ucrânia caíram mais de 40% em relação à sua média pré-guerra, com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos a prever a exportação de 10,5 milhões de toneladas métricas no próximo ano.

A Ucrânia acusou a Rússia de abrandar as inspeções dos navios, o que, combinado com a ausência de novas embarcações, levou em outubro a uma queda das exportações de 4,2 milhões de toneladas métricas para dois milhões.

O que mais afeta o abastecimento alimentar?

As consequências da pandemia, os conflitos, as crises económicas, a seca e outros fatores climáticos afetam a capacidade das pessoas de obterem o suficiente para comer.

Há 45 países que necessitam de assistência alimentar, segundo a Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO) num relatório de julho. 

Os elevados preços dos alimentos no mercado interno estão a provocar fome na maioria desses países, incluindo o Haiti, a Ucrânia, a Venezuela e vários em África e na Ásia.

Embora a seca também possa ser um problema para os principais fornecedores de cereais, os analistas veem outros países a produzir cereais suficientes para contrabalançar as perdas da Ucrânia.

Além das enormes exportações da Rússia, a Europa e a Argentina estão a aumentar os envios de trigo, enquanto o Brasil registou um ano de grande sucesso para o milho.

"Estes mercados adaptam-se e os produtores adaptam-se. Os mercados do trigo e do milho adaptaram-se muito, muito rapidamente", disse Peter Meyer, diretor de análise de cereais da S&P Global Commodity Insights.

Leia Também: Aliados europeus de Kyiv condenam suspensão russa do acordo dos cereais

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