De um lado, o ultraliberal Javier Milei, um 'outsider' que tenta suplantar a máquina partidária do peronismo, no poder em 16 dos últimos 20 anos através da sua ala mais radical de esquerda, o 'kirchnerismo', corrente política liderada pela vice-Presidente Cristina Kirchner, agora aliada ao centro-esquerda de Sergio Massa, atual ministro da Economia.
"Esse choque de visões está baseado em medos cruzados. Não só existe medo associado à figura de Javier Milei. Também há medo associado com Sergio Massa. Pelo lado de Massa, os eixos que ordenam esses medos são democracia versus autoritarismo, público versus privado e loucura versus cordura. Pelo lado de Milei, é anti-kirchnerismo versus kirchnerismo, sinónimo de mudança versus continuidade", explica à Lusa a cientista política Shila Vilker, diretora da consultora Trespuntozero.
O pedreiro, canalizador e eletricista atualmente desempregado Flavio Arenales, de 51 anos, diz que Javier Milei lhe abriu os olhos.
"Milei fez-me perceber que existe outra realidade possível, principalmente por querer acabar com a corrupção e reduzir o Estado. Estamos cansados de continuar assim", desabafa Flavio, em entrevista à Lusa.
"O meu medo se Sergio Massa ganhar é que passemos de ser uma Venezuela - com a inflação que temos e com uma moeda que não serve para nada -, para nos tornarmos uma Cuba, com escassez de comida e de combustível", acrescenta Flavio.
A inflação na Argentina acumula 142,7% nos últimos 12 meses, a mais alta dos últimos 32 anos. Desde que o Presidente Alberto Fernández assumiu o cargo, em dezembro de 2019, o peso argentino desvalorizou-se em 1.500%, medido pelo valor do dólar paralelo, o único ao qual os argentinos têm acesso como moeda de referência para evitar a perda acelerada de poder aquisitivo.
A falta de dólares nas reservas do Banco Central afeta as importações e impede que entrem no país componentes básicos para a produção interna. No final de outubro, o país viveu uma escassez de combustíveis durante uma semana.
O economista Javier Milei promete reduzir drasticamente o Estado, eliminar o Banco Central e 'dolarizar' a economia, substituindo o peso pelo dólar.
"Milei tem os seus erros, sim. E daí? Estamos cansados de viver assim a recuar a passos agigantados como país. Há certas declarações que Milei fez antes da campanha que são ideias delirantes como venda de órgãos, porte de armas, fim dos planos de assistência social. Uma série de estupidezes. São erros próprios de quem fala quando está longe do poder", minimiza o canalizador Jorge Apauzo, de 63 anos.
Jorge preferia outro candidato que não passou à segunda volta, mas abraçou a campanha de Javier Milei nesta reta final como única alternativa de uma mudança no país.
"Voto em Milei para ser livre. Com o peronismo, não existe eleição limpa. Eles compram os votos com frigoríficos e fogões. Distribuem subsídios que mantêm as pessoas na miséria para continuarem a ser compradas e a votar neles. Se Sergio Massa ganhar, isso vai continuar", diz Jorge à Lusa.
As duas campanhas apelam à estratégia do medo. Na campanha de Sergio Massa há mais peças publicitárias contra Milei do que a favor do próprio Massa. Essas propagandas usam declarações anteriores de Milei para advertir que, se o libertário ganhar, haverá um mercado de venda de órgãos, o porte de armas será liberalizado, a Educação e a Saúde, hoje gratuitas, serão pagas, etc.
Por sua vez, o economista ultraliberal Javier Milei apela ao medo quando alerta que continuar com Sergio Massa pode levar o país à hiperinflação e torná-lo uma Venezuela.
"De um lado, existe uma procura muito profunda de que alguma coisa mude por medo de se tornar Venezuela. Do outro lado, entre os eleitores de Massa, temos desde aqueles para quem Milei representa um susto até aqueles para quem é um fascistoide que representa um perigo total para o sistema democrático", aponta a especialista em Opinião Pública Shila Vilker.
A posse do Presidente eleito neste domingo será no dia 10 de dezembro, dia em que também se celebram 40 anos do regresso da democracia ao país.
A funcionária pública do Ministério do Turismo Marcela Cuesta, de 69 anos, teme pelo futuro da democracia, especialmente pela candidata a vice de Milei, Victoria Villarruel, filha e sobrinha de militares ligados à ditadura (1976-1983). Villarruel ficaria responsável pelas áreas de defesa, Segurança e Inteligência.
"As medidas que ela manifesta querer aplicar realmente dão medo. Isso acabaria com a democracia na Argentina. Eles estão a motivar os jovens das Forças Armadas a reprimirem caso haja resistência às decisões políticas e económicas que pretendem realizar", avisa Marcela, temendo pela perda de direitos humanos, matéria na qual a Argentina é exemplo no mundo.
Outro foco de preocupação de Marcela é quanto à perda da gratuidade na Saúde, na Educação e nas universidades, em particular, três pontos nos quais a Argentina é referência regional.
"As propostas de Javier Milei são realmente alarmantes. É só ouvir o que ele tem dito sobre um mercado de órgãos humanos, de crianças. Além disso, ele fala com o seu cão morto, o mesmo que ele clonou. São atitudes de uma pessoa sem nenhuma cordura", exclama Marcela em conversa com a Lusa.
A advogada Valeria Ayala, de 36 anos, também faz uma lista de direitos em risco com a vitória de Milei.
"Vou votar em Sergio Massa porque é importante conservar direitos como a Saúde e a Educação pública. Do outro lado, só se fala em recortar e em destruir. Eu mesma sou diabética e insulinodependente. Já falaram sobre acabar com a entrega de insulina aos diabéticos. Isso já é aberrante e causa-me medo", alarma-se Valeria.
"Outro aspeto muito forte é negar a história argentina, negando os desaparecidos pela ditadura militar. Isso me dá muito medo", acrescenta, temendo ainda o futuro da convivência social no país.
"Sergio Massa é um homem de gestão, uma pessoa de consenso e de diálogo. Com Milei, a sociedade estaria muito violenta e intolerante", preocupa-se Valeria.
As 22 sondagens realizadas no país indicam um empate nas eleições de domingo, a maioria com uma leve vantagem para Javier Milei, mas dentro da margem de erro. Os cerca de 10% de indecisos e de eleitores que ainda podem mudar os seus votos vão decidir o futuro do país pelos próximos quatro anos.
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