O julgamento do caso, que envolve 51 arguidos, começou no início do mês na localidade de Vaucluse, na região de Avignon, sudeste de França, e está suspenso até segunda-feira devido a problemas de saúde alegados por Dominique Pelicot, 71 anos, principal acusado no processo.
Violada dezenas de vezes por dezenas de homens
Gisèle Pelicot, 71 anos, foi violada dezenas de vezes entre 2011 e 2020 por dezenas de homens que o seu então marido, Dominique Pelicot, com quem tem três filhos e estave casada até agosto, contactava para que tivessem relações sexuais com ela depois de a drogar com recurso a ansiolíticos.
Os abusos foram descobertos em setembro de 2020 quando Dominique Pelicot foi detido pelos seguranças de um supermercado depois de três mulheres o terem denunciado à polícia por ter tentado filmar por debaixo da suas saias.
Quando a polícia analisava o material informático apreendido ao suspeito encontrou milhares de fotografias e vídeos onde aparecia uma mulher inconsciente a ser submetida a vários tipos de abusos.
Foi a polícia que revelou estes abusos a Gisèle Pelicot, que afirmou em tribunal que num primeiro momento teve dificuldades em reconhecer-se quando se viu adormecida e constatou como foi abusada.
Dominique Pelicot e mais 50 acusados
O caso de Gisèle Pelicot chegou a julgamento no início de setembro, quatro anos após a descoberta dos abusos.
A investigação identificou mais de 70 suspeitos, dos quais 50 foram formalmente acusados de violação agravada juntamente com Dominique Pelicot. Os acusados têm entre os 26 e os 74 anos e enfrentam penas de prisão de até 20 anos num julgamento que começou a 2 de setembro e deverá prolongar-se até dezembro.
Ao longo dos próximos meses, os arguidos comparecerão em pequenos grupos perante um coletivo de cinco juízes, estando previsto que Pelicot possa falar na próxima semana, depois de na semana passada ter sido dispensado de comparecer em tribunal por motivos de saúde.
Nos primeiros dias do julgamento, foram revelados pormenores dos repetidos abusos e do elaborado sistema que Pelicot tinha posto em prática ao longo de 10 anos.
Ao ouvir alguns dos pormenores em tribunal, a filha do casal, que também aparece nua em fotomontagens encontradas no computador do pai, abandonou a sala de audiências.
De cabeça erguida por outras vítimas de violação
Gisèle Pelicot, que testemunhou em tribunal a 5 de setembro, aceitou que o seu nome fosse divulgado publicamente e insistiu para que o julgamento fosse à porta aberta.
Desde o início do julgamento, a francesa tem sido elogiada pela sua coragem e compostura.
Primeiro pela decisão de manter o julgamento público - depois de o tribunal ter sugerido inicialmente que fosse realizado à porta fechada -, depois por ter permitido que os jornalistas publicassem o seu nome completo e que o tribunal exibisse vídeos explícitos, gravados pelo marido.
Afirmou que as suas decisões foram tomadas em solidariedade com outras mulheres que não são reconhecidas como vítimas de crimes sexuais.
Ao falar pela primeira vez desde que, há quatro anos, os agentes da polícia a chamaram para lhe contar o impensável, descreveu o horror de descobrir que o seu ex-cônjuge a tinha sedado e convidado mais de 70 estranhos para a sua casa na Provença para terem relações sexuais com ela.
Nesse dia, a emissora nacional TF1 descreveu-a como uma mulher "digna, forte", que estava "de cabeça erguida".
Numa carta aberta traduzida para inglês e publicada no jornal francês Le Monde, a jornalista e escritora Hélène Devynck agradeceu a Pelicot pela sua coragem, fazendo eco dos sentimentos de muitos outros franceses.
Em França, estudos indicam que nove em cada dez mulheres vítimas de violação não apresentam queixa. E quando o fazem, cerca de 80% dos casos são arquivados.
Julgamento suspenso até segunda-feira
Dominique Pelicot confessou os crimes aos investigadores, mas a sua audição em tribunal será crucial para que o coletivo de juízes decida sobre o destino dos outros 50 homens acusados de violação.
A sua presença em tribunal esteve inicialmente prevista para terça-feira, 10 de setembro, mas o acusado acabou por não comparecer em tribunal por ter sido hospitalizado para receber cuidados médicos.
Depois de até quinta-feira não ter sido possível concretizar a audiência com o principal acusado deste caso, o presidente do Tribunal Penal de Vaucluse, Roger Arata, suspendeu o julgamento até segunda-feira, altura em que haverá uma audiência para tomar uma decisão a longo prazo, com base num relatório médico que solicitou sobre Pelicot.
Especificou que se Pelicot estiver presente na segunda-feira, tudo continuará, mas se não estiver, há duas possibilidades: a suspensão será prolongada por alguns dias se se considerar que ele pode regressar rapidamente, ou todo o processo será adiado, com tudo o que isso significaria em termos de uma revisão total do calendário.
Arata espera que este relatório lhe chegue durante o fim de semana, para que possa informar antecipadamente os advogados sobre o que pode ser feito e para que os arguidos, as vítimas e as suas famílias possam ser aconselhados, por sua vez, a evitar viagens desnecessárias.
Dominique Pélicot foi dispensado de comparecer no julgamento na semana passada, mas espera-se que possa depor na segunda ou na terça-feira, segundo informou a sua advogada, Béatrice Zavarro, que insistiu nos últimos dias não fazia sentido continuar o julgamento sem ele.
Os outros acusados
A maioria dos 50 acusados neste processo contesta a acusação de violação. Alguns alegaram que acreditavam que o consentimento do marido para as relações sexuais era suficiente, outros disseram que foram enganados por Dominique Pelicot para acreditarem que a sua mulher estava a consentir.
Um advogado que representa seis arguidos chocou a França, argumentando que "há violação e violação e, sem intenção, não há violação".
Um destes 50 homens que estão a ser julgados em Avignon é acusado de repetir o mesmo padrão com a sua própria companheira.
"É imperdoável", declarou ao tribunal de Vaucluse, na quarta-feira, a filha do homem, Jean-Pierre M., 63 anos, acusado de ter dado ansiolíticos à sua companheira e de ter tido relações sexuais com ela, várias vezes na companhia de Dominique Pelicot.
A filha, que soube de tudo quando o pai foi detido, afirmou estar convencida de que o pai não teria organizado estas práticas com a sua própria mulher se não tivesse conhecido Dominique Pelicot, mas sublinhou que ele é acusado de algo que é "muito grave, indesculpável" .
Jean Pierre M. admitiu no início do processo os factos de que é acusado e, segundo um dos agentes da polícia encarregados da investigação, considera que merece a prisão perpétua.
Os juízes terão de determinar a sua responsabilidade neste caso, cujo foco é Dominique Pelicot e os ficheiros que guardava.
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